quarta-feira, janeiro 24, 2007

UFA! NOVA POSTAGEM. Desculpem-me pela demora. Parece que agora a coisa será mais constante.
O primeiro automóvel de Goiás. Ford modelo T de 1916, fotografado no "Olho d'Água" de Jataí, dia 22 de agosto de 1918. Aparecem aí, além de Ronan R. Borges ao volante com Sidney Pereira de Almeida, as srtas. Luzia Toledo e Esmeralda de Carvalho, acompanhadas por duas meninas.

CAVALO DE RODAS

“A Entrada do Automóvel em Goiás”

por Basileu Toledo França

(edição de 1979)

Todas as manhãs, aquele senhor de cabelos brancos e passos firmes entrava na banca de revistas onde eu trabalhava. Estava ele a procura da sua edição diária de O Globo. Eu não sabia exatamente quem era esse senhor que todos chamavam de “professor”, só sei que a gente não se ‘dava muito bem’. Nunca existiu um motivo para tal... nenhuma discussão ou falta de educação... nada. Nossos espíritos simplesmente não batiam (como diz o dito popular).

O jornal era transportado, via transporte terrestre, todos os dias de Brasília para Goiânia. Nem sempre chegava na hora exata. Esses atrasos causavam irritação naquele senhor, que era nada mais nada menos que o Professor Basileu França!!!! Na certa ele pensava que aquele atraso era culpa minha e talvez tenha nascido ai a sua irritação para com a minha pessoa.

Eu tinha contato com ele todos os dias, mas não sabia que ele era autor de livros que um dia me chamariam a atenção, entre eles o “Cavalo de Rodas”. Vim tomar conhecimento de suas obras somente após o seu falecimento. Foi uma triste ironia do destino, uma vez que poderíamos ter sido bons amigos (nunca fomos inimigos... a gente apenas ‘não se dava’). Segundo informações que tive de pessoas próximas a ele, a coisa que ele mais gostava era de conversar sobre seus livros, suas histórias, suas vivências.

Para quem ainda não conhece o trabalho do Professor França, selecionei aqui algumas passagens do seu interessantíssimo CAVALO DE RODAS:

(Orelha do livro – por Paulo Bertran)

“Distância é o paradigma goiano. Distância interna aos portos, distâncias do mundo, em breve uma sociedade rica em distâncias.

Este livro trata de como se as venceu em Goiás.

Historia-se, em torno dos anos 1920, a penetração do Sudoeste goiano pela pioneiríssima estrada ligando Itumbiara a Rio Verde e Jataí, primeiro feito do que viria a ser em Goiás a implícita estratégia do século: estradas de rodagem.

Serão os Ford Double Phaeton, os SPA, os Fiat a carregarem então, na trilha áspera das antigas estradas carreiras, essa formidável bagagem de transformação sócio-econômicas que o automóvel trouxe consigo.

Os veículos automotores proporcionaram a segunda revolução industrial. Pela rapidez no transporte de bens, aceleraram no sistema econômico a velocidade de retorno do capital, acarretando intensa modificação na estrutura dos fatores de produção.

Contas feitas, é o automóvel que liquida a imobilidade feudal da vida rural e que institui todo um novo mundo, comandado pelas cidades.

Em face do mundo antigo, o automóvel e a telegrafia destruíram a noção de espaço físico, assim como depois a televisão e o cinema destruíram as noções de tempo e de continuidade.

Conjecturalmente, em Goiás, não fosse o advento da ferrovia ao Sul e da Rodovia no Sudoeste, possibilitando o carreamento intenso de riquezas e criando uma base estável de recursos financeiros e fiscais, dificilmente se conceberiam Goiânia e Brasília ao tempo que surgiram e os poderosos fluxos que empreenderam neste século a segunda colonização de Goiás, estariam obstruídos.

Embora socialmente mais oneroso, a alta flexibilidade e mobilidade do automóvel, opõe-nos desde logo à Ferrovia. Intensas revoluções regionais acometem Goiás desde sua entrada. Pelo automóvel o comércio foge das fazendas e dos campos de pouso de tropas, em favor das cidades.

Hierarquiza-se o espaço econômico. As cidades e vilas passarão a ser agenciadores de economia regional.

Tudo isto nos revela o Prof. Basileu Toledo França nesta brilhante e detalhada descrição dos primeiros feitos automobilísticos em Goiás.

Como heróis de uma saga moderna, conta-nos das aventuras rodoviárias dos primeiros fordecos, apresenta-nos seus primeiros choferes e proprietários, como aquele empresário Ronan Rodrigues Borges e seus sócios, cujas biografias fazem-nos refletir sobre a estranha capacidade que faculta o automóvel de, reproduzindo-se a dinâmica pessoal do pioneiro Henry Ford, realizar-se, independente de tempo social e remoto lugar, o espectro da moderna economia de mercado. Pelo automóvel.

Com este seu novo livro brinda-nos o Prof. Toledo França com excelente material para amena leitura e para pesquisa básica, restituindo-nos aos arcanos, ao vivo tempo histórico de quando instalou-se em Goiás o reinado do automóvel.”

ALGUNS TRECHOS DO LIVRO:

“Começamos a elaborar este livro em 1956, com os primeiros documentos coletados, mas, por falta de arquivos e bibliotecas, somente pôde ser escrito em sua forma definitiva a partir de 1977, diante da grande massa de dados e informações reunidas penosamente ao longo dos anos. Isso exigiu cerca de dez meses para chegarmos ao texto atual.” (Prefácio – página 17)

“A entrada de veículos automotores em Goiás, por se tratar de um estado continental, ocorreu em duas épocas diferentes, separadas por treze anos de intervalo, sendo uma no sudoeste em 1916, por influência do Triângulo Mineiro, onde a Estrada de Ferro, já tinha chegado desde 1889, e outra no norte em 1929, por iniciativa pessoal de um grande líder de Porto Nacional, Dr. Francisco Aires da Silva, médico e deputado federal pela terra de Anhanguera.” (O Homem e o Automóvel nos Sertões de Goiás – página 59)

“O terceiro evento notável, que nunca louvaremos o suficiente, foi a construção de uma ponte de aço – a Ponte Pênsil – sobre o volumoso e profundo Paranaíba, durante 1908/1909, no governo do Presidente Afonso Pena, que lhe emprestou o nome. O que isso representou para o sudoeste, particularmente, e para Goiás de modo geral, é fácil de se imaginar.” (O Homem e o Automóvel nos Sertões de Goiás – página 65)

“...entre os fatores mais ponderáveis do seu desenvolvimento, além da posição geográfica privilegiada, achava-se sem dúvida a ponte metálica construída e inaugurada na gestão do Presidente Afonso Pena. Após 1909, quando foi entregue ao público, a corrente de riquezas passou a fluir mais rapidamente pela ponte pênsil e as manadas bovinas não tinham mais que ser atiradas na água, para a travessia perigosa e difícil do grande remansoso caudal. As coisas tornaram-se mais cômodas para os carreadores de bens econômicos nas duas zonas fronteiriças.” (Influencia do Triangulo Mineiro – página 86)

“...alcançaram a ponte pênsil. A noite era muito escura e do lado de Minas havia uma porteira de bater a fim de não permitir a entrada de criação. Do lado de Goiás existia outra, igual às de curral, trancada com cadeado e corrente.” (Influencia do triangulo Mineiro – página 102)

“...o sudoeste era a continuação natural de Minas, não apenas no ponto de vista da geografia, que o Paranaíba tentava separar em vão, mais ainda e de modo particular no que diz respeito ao tipo humano, com todo o saber tradicional que nos trouxe por cima dos antigos trilheiro de índio, que vinham noutras épocas na estação de caça de Mato Grosso até Minas Gerais, corriam então os carros e carretões ou viajavam os cavaleiros, as tropas e as boiadas, na bucólica paisagem em que o cavalo era o meio principal de se ir e vir.” (O Sudoeste Antes do Automóvel – página 80)

“O Triangulo Mineiro, assim denominado em 1875 pelo ilustre médico, professor, jornalista e padre francês Henrique Raimundo Des Genettes, antes se chamou Sertão da Farinha Podre e foi território goiano até 17 de maio de 1816, quando passou para Minas Gerais a pedido dos habitantes de Araxá e Desemboque, grandes criadores de gado, que não se conformavam em pagar 600 réis de imposto sobre cada cabeça exportada para outras províncias.” (Influência do Triângulo Mineiro: Quatro Rodas na Paisagem do Boi – página 85)

“Em novembro, quando a I Grande Guerra crescia de intensidade na Europa distante, sem nos atingir diretamente, o comerciante Ronan Rodrigues Borges, sócio e gerente da firma Borges & Irmãos, proprietário da “Casa Branca” de Santa Rita (Itumbiara), chegou à pequena cidade em um carro Ford, Modelo T, Double Phaeton, recém-chegado da fábrica de Detroit, no Michigan, e adquirido dos distribuidores em São Paulo, de onde saiu encaixotado por estrada de ferro até Uberabinha (Uberlândia). Tal como os refrigeradores de hoje.” (Influencia do Triangulo Mineiro – página 87)

“Ronan Rodrigues Borges continuava na Casa Branca acreditando em autos como concorrentes dos ronceiros carros de boi e das lerdas cavalgaduras. Os irmãos queriam continuar comerciando apenas como já vinham fazendo, sem participar de outros riscos além dos inerentes a esta atividade.

Foi aí, nesse ponto os acontecimentos, que o jovem homem de ação convidou o amigo Sidney Pereira de Almeida a fim de requererem juntos ao Governo do Estado de Goiás um provilégio para a construção de estrada de rodagem, que ligasse Santa Rita do Paranaíba (Itumbiara) a Mineiros, passando por Rio Verde e Jataí, com ramal até o porto de São Jerônimo. Imediatamente o convite foi aceito e os dois constituíram seus procuradores na capital os advogados Albatênio Caiado de Godoi e Claro Augusto de Godoi.” (Influencia do Triangulo Mineiro – página108)

Ronan Rodrigues Borges, iniciador do automobilismo no Estado de Goiás

A PRIMEIRA VIAGEM DE PROPAGANDA DO FORD

(página 111 até 150)

Tão logo saiu o privilégio para a construção da estrada Sul-Goiana, Ronan Rodrigues Borges preparou uma excursão de propaganda do automóvel pelo sudoeste, que partindo de Santa Rita do Paranaíba fosse até Jataí, passando por Rio Verde. A finalidade principal era preparar o espírito do povo, que não acreditava na viabilidade do cometimento, levando em conta a falta de estradas próprias e ainda que os veículos eram máquinas complicadas e frágeis para os nossos vaqueiros despreparados para isto.

Ronan Rodrigues Borges mandou antes por carro de bois gasolina e óleo lubrificante, que foram deixados em pontos estratégicos do percurso traçado, e a 15 de agosto de 1918, em companhia do sócio e amigo Sidney Pereira de Almeida, partiu no seu Ford Double Phaeton, modelo T 1916. O motorista José Sabino de Oliveira, o Zé Cachimbo, que contratara no mês de novembro de 1916 na cidade de Uberabinha, teve o cuidado de levar ainda 5 caixas de gasolina, 10 galões de óleo lubrificante e peças sobressalentes, bem como enxada, machado, foice e enxadão para enfrentar os prováveis reparos de estrada carreira e abertura de picadas para a passagem do veículo. Eram 7 horas da manhã e muita gente assistiu à partida dos três homens no fordeco. Estavam alegres. Iniciou-se a viagem.

De vez em quando tinham que descer para cortar com facão ou roçar algumas plantas, desimpedindo a passagem e prosseguiam. Haviam percorrido 18 quilômetros mais ou menos, quando às 9 horas, passando só por estrada de carro de bois, conhecida como salineira, e através de cerrado, o carro saiu da distribuição. Pararam. Sabino abriu o capô e descobriu que tinha se quebrado o pino do marlete. “É, minha gente, vamos substituir isto aqui”. Meia hora depois, com a ajuda dos patrões ele improvisou a peça com um prego. O sol já estava alto e quente à beça. Continuaram e logo depois chegaram ao ribeirão da Boa Vereda, onde passaram bem de vau, apesar de muita água e muita pedra, os conhecidos emburrados. Às 11 horas aproximadamente alcançaram o Meia Ponte, já bastante volumoso nessa altura, e ali encontraram a balsa que atravessava carros de boi. Gritaram para o barqueiro do outro lado. Era empregado de João Vermelho, cuja fazenda ficava a 1 quilômetro dali. O pessoal já estava esperando e sabendo mais ou menos da novidade. Logo veio o barqueiro e trouxe a barca no cabo de aço, sem se assustar com nada. Apenas admirou muito: “Como que passaram com um trem baixo assim na estrada?” Ronan logo se apressou em explicar: “Passamos, o chofer aqui é perito”. Nem sequer elogiou o carro, como seria justo fazer. “Vamos para Jataí.” O barqueiro perguntou duvidando: “Será que dá pra ir lá?” “Dá sim”, foi a resposta. “Amanhã ou depois nós estamos chegando lá...” Os viajantes tinham confiança nisto. Chegaram à fazenda de João Vermelho e ali também não houve o menor susto. A família já conhecia carros. O fazendeiro apareceu junto da porta, meio admirado, com Neném, seu filho, a esposa e mais algumas pessoas. Enquanto isto, os cachorros latiam em barulheira dos diabos. O homem era ferreiro, tinha uma tenda para fabricar chapa de carro de bois, armação de arreios e outros produtos. Mostrou-se muito satisfeito de ver o automóvel na fazenda, coisa que nunca sonhou. Depois dos cumprimentos, João Vermelho demonstrou o seu entusiasmo: “Seu Ronan, quero mandar o José Sabino ensinar o meu filho Neném a choferar. Para isto vou comprar um Ford na firma Borges & Irmãos e mando depois o menino até Santa Rira para aprender.” Começava a dar resultados práticos a viagem do cavalo de rodas.

O fazendeiro era alto, claro e meio vermelho, com cerca de 50 anos e o filho tinha 18. Bastante amável o velho, morava em casa confortável de telha comum, assoalhada, quintal bem plantado, currais ao lado e um bom rego d’água. Convidou os viajantes para almoçar e eles imediatamente aceitaram, apesar de terem no carro farta matula constituída de queijos, marmelada, goiabada e boa farofa de frango. Logo após a refeição veio o café, plantado no quintal, e alguns queijos como presente do dono da casa. Eram 4 ao todo. Ficaram um pouco ali lembrando as paradas e as dificuldades do primeiro trecho, quando beberam nos ribeirões, mataram a sede do carro que às vezes esquentava até ferver, ou estacaram para verter água.

Depois puseram óleo, encheram o tanque de gasolina, lotaram o radiador do fordinho e quiseram saber como estava o estirão em frente. “Péssimo” adiantou-lhes o fazendeiro. “Vocês vão ficar encravados num córrego daqui a quatro léguas. É bem fundo. Daqui até o Cascavel vão encontrar um pedaço muito ruim.” Com tudo isto, entretanto, o destino era Jataí e a viagem iria continuar cerca de 13 horas. A topografia era plana, campo meio limpo, batido de gado, cerrado ralo, embora não se enxergasse longe. A saída foi até boa durante uns 2 quilômetros. Daí pra frente o chofer foi repartindo facão: uma roda em cima dele e outra no barranco do lado, enquanto embaixo se abria valeta de metro e meio. Nem carro de boi passaria ali, pois viram depois que era uma estrada velha abandonada. Nessa altura tiveram que parar, nem pra frente nem pra trás. Adiante estava um valo onde acabava o facão do caminho e pra voltar não tinha condição, deveriam fazer marcha a ré de duzentos metros, equilibrando o carro em cima da grande valeta, que ultrapassaram com dificuldade. Sidney Pereira de Almeida quis saber: “Como é que vamos fazer agora? Encravamos.” Ronan manteve a calma: “Seu Zé aí resolve. Ele sabe o que faz.” Parou e estudou uma saída com os companheiros. Geralmente Ronan era o guia dos maus trechos. José Sabino resolveu conservar travado o carro, firme na direção e os dois foram cortando por igual o facão de um lado e o barranco do outro, beirando as rodas, de tal modo que o fordinho descesse até o fundo da valeta, onde estava a velha estrada. Ai notaram que existiam dois caminhos: uma carreira nova, que na frente se tornava péssima e mais distante, e outra velha, mais perto e na frente bem melhor. Escolheram a última, de acordo com a recomendação de João Vermelho. “Vamos para a esquerda, pra direita dá volta” – concluiu José Sabino, que sempre procurava atalho, a fim de encurtar a distância. Seguiram viagem sem maior novidade. Cerca de meia légua depois encontraram um córrego na capoeira suja, com excelente lugar para pouso. Limpo, todo forrado de capim baixo e servido de boa água. Eram então cerca de 5 horas da tarde. Como não poderiam atravessar o córrego em frente com o escuro, porque era de fato um lugar difícil, os três resolveram descansar e ficar por ali mesmo. Tinham viajado sessenta quilômetros, enchendo o radiador do Double Phaeton de quando em quando. A cada trecho de dez ou doze quilômetros, mais ou menos. Como não tivessem barracas – o espaço era reservado a caixas de gasolina, latas de óleo lubrificante e outros acessórios indispensáveis – arrumaram camas improvisadas de coxonilho e manta, acenderam fogo com gravetos do campo, fizeram logo o café e esquentaram a farofa de galinha em panelas de latas de folha. Por fim comeram queijo e ficaram contando lorotas até o escurecer. Veio uma noite de lua clara, o foguinho foi se acabando e os três homens cobriram a cabeça com toalhas para evitar os mosquitos. Dormiram ao relento.

SEGUNDO DIA DE VIAGEM

José Sabino levantou-se com os pássaros-pretos cantando por perto. O dia estava nascendo. Acordou os companheiros: Eh pessoal, o dia já nasceu”. O mais calmo era o Sidney Pereira, sem pressa. Ronan Borges era vexado, rápido. Lavaram-se no córrego, fizeram fogo e coaram o moca cheiroso, que foi bebido com bolachas, queijo e requeijão. “Barriga cheia, pé na areia” – disseram. Puseram tudo dentro do fordeco e quiseram sair, nada, o bicho não pegava por causa da friagem. Era problema funcionar o motor do automóvel pela manhã, naquela época. Depois de várias tentativas, o chofer ergueu uma das rodas traseiras no macaco, deu na manivela e o motor começou a funcionar. Deixou a máquina esquentar por alguns minutos, em seguida partiram. Durante a primeira hora, ou pouco mais, viajaram tranqüilos e satisfeitos com a marcha. Um bom rendimento. Pelas 8 da manhã, deram com o riozinho fundo anunciado por João Vermelho. Lugar de pouca elevação, as águas do riacho meio encaixadas, embora os terrenos em volta fossem planos. Nas margens, mato sujo. Pararam por ali, que remédio. Examinaram detidamente o regato, estudaram com calma a situação, o problema estava em atravessar aquele obstáculo sem entrar águia na bobina do carro. Depois de muitos cálculos e conjecturas, resolveram atravessar por onde lhes parecia melhor. José Sabino entrou com o veículo no córrego com firme convicção. Ele andou um pedaço e começou a apagar, rateando, por que a água estava atingindo o copo de distribuição e o ventilador. Pisou na gasolina com decisão e conseguiu sair do outro lado. Aí o carro começou a falhar novamente, dando arrancos. Parou no terreno movediço e arenoso. Abriu o cofre do lado direito, tirou o copo, enxugou os quatro fios com pedaço de pano, lubrificou o martelete e o copo, pôs tudo no seu lugar e tentou a manivela. Imediatamente o motor principiou a funcionar de novo, para a alegria do pequeno grupo. Os companheiros gostaram do expediente do chofer. “Êta Zé Cachimbo sabido!” disse um deles. Prosseguiram viagem. Mais adiante, encontraram estrada muito boa, conforme João Vermelho disse, já em terrenos da fazenda Cascavel. Plano, de chão. Enxergava-se bem longe. Nesse lugar, José Sabino brecou o veículo para pôr mais água no radiador e observou o nível do óleo. Ronan Borges pediu o volante para descansar o chofer, mas ele só concordou depois de recomendar ao patrão: “Não vai correr demais não, senão pode atrapalhar, estoura algum pneu, aí babau...” Seguiram em frente. Ronan Borges estava satisfeito, achando tudo muito bom, afundou o pé pouco mais e derrapou o carro a 40km por hora. Arrebentou uma câmara de ar. Sabino achou ruim, resmungou mas não disse nada. Era a câmara de ar da roda traseira do lado direito. Sidney entretanto não deixou passar: “Eu não falei, Ronan, que você estava correndo demais. Não falei que você não podia guiar? Você é muito afobado.” A resposta foi tranqüilizante: “Isto não é nada. Consertamos. Aí tem câmara nova, mas vamos concertar esta mesma.” José Sabino pôs o macaco, debaixo do sol quente do meio dia, e começou a trabalhar com a roda. Em meia hora, mais ou menos, o remendo estava pronto e a peça no lugar. A excursão continuou, tendo Ronan Borges ao volante, mas guiando com mais cuidado. Chegaram logo à fazenda Cascavel. Uma fazenda antiga, muito grande. Lugar plano, bonito, com a vista se estendendo pelos campos de pastagem. A casa era de telha, assoalhada, currais velhos, tudo meio abandonado. Havia ali dois moradores. Ninguém viu mulheres. Um homem magro, claro e sujo, facão na cintura, tratou bem os viajantes inesperados. Deu informações sobre o terreno na frente. “Os senhores tem que andar é no cerrado.” “Por quê?” – quiseram saber. “Porque não tem outro jeito nesse terreno vermelho. Muito toco, cheio de facão.” Entraram e ficaram conversando um pouco. Quando eram 14 horas, recomeçaram a marcha a fim de alcançar o rio dos Bois, distante 5 léguas mais ou menos. Coisa curiosa que notaram na região, não existia gado manso. “Há muita brabeza, por aqui, informou o homem.” Seguiram viagem. Dois quilômetros dali, encontraram de fato muita dificuldade. Tocos. Facão na estrada carreira. Pedras à ufa. Tiveram que entrar no cerrado. Então passaram um mau pedaço. Ronan no machado e Sidney na foice iam abrindo picada, enquanto o chofer olhava do volante e orientava o trabalho dos patrões. José Sabino achava as curvas feitas por Ronan muito fechadas, reclamava constantemente mas ele nem ouvia, não dava a mínima atenção. O chofer largava de lado o caminho dele e tocava o carrinho pelo cerrado, derrubava arbustos e construía no peito outra passagem improvisada. Simples trilheiro em cima da vegetação. Em razão disto, muitas vezes o trabalho de Ronan Borges era perdido. Viajaram assim, com essas dificuldades todas até ficarem desorientados, perdidos no cerradão sujo, de tanto vai para aqui, para ali. Não sabiam mais o rumo do vau do ribeirão de Santa Bárbara onde deveriam passar. O campo tinha se tornado mato. Estacaram debaixo de umas árvores, refrescaram as idéias, trocaram opiniões. Nisto, ouviram pelos ventos o barulho da corredeira lá das três ilhas, no rio dos Bois. Ronan se animou então, porque conhecia bem a região viajando a cavalo. “Logo acima está o porto do Mariano. Nós temos que sair à direita, nesta direção, para dar em cima do vau do Santa Bárbara.” Os outros concordaram. Puseram água no carro, José Sabino viu o óleo e os capotões. Eram umas 4 horas da tarde. Logo Ronan saiu na frente com o facão e Sidney com a foice no mesmo passo. Enquanto o primeiro, com as mãos calejadas, ardendo nos calos de sangue, ia afobado em sua pressa, o outro não perdia a calma de sempre. “Seu Ronan, disse o chofer, continua fazendo curva muito fechada, está perdendo tempo, isto acaba com as mãos...” O patrão quase se irritava, ordenando: “Então apeia o senhor.” A resposta vinha de imediato: “Não posso deixar o senhor guiar.” Concordava. “Então desce e mostra a direção em que quer a picada.” José Sabino apeava e ajudava um pouco também. Felizmente, uma hora depois, cansadíssimos, chegaram afinal ao vau do Sta. Bárbara. Local plano, lageado de pedras. Muitas árvores grandes pela margem esquerda e do lado direito campo e vargens limpas, com buritis. Lugar bonito. O ribeirão tinha muita água, uns 40 metros no vau. Fundo no meio e cheio de pedras no leito. Água bem clara. Entraram com o carro devagar, engatado na primeira marcha, apalpando o terreno. Em pouco tempo, José Sabino percebeu que ia ficando cada vez mais fundo, embora lentamente. De qualquer forma, não poderia mesmo voltar, o remédio era meter a cara pra frente. Continuou. Foi até pegar um metro d’água. Ela invadiu o assoalho, entrou no motor e o motor apagou. Lá ficaram os três, pensando e discutindo como sair e alcançar o outro lado. Sidney Pereira e Ronan Borges refrescaram o corpo, tiraram a roupa, deixando só a camisa, e entraram na correnteza. José Sabino tinha medo do carro rodar, e ele era leve e logo abaixo existia uma cachoeira, descendo cerca de dez metros com tombo forte de uns dois metros aproximadamente. Por sorte, depois de meia hora de agonia, chegavam ao local, do mesmo lado em que eles haviam entrado, 12 bois e 1 carreiro branco, sujo como todo carreiro, acompanhado de um rapazote, seu candeeiro. Ronan já tinha prevenido alguém no caminho, que mandasse juntas de boi ajudá-los, porque era bem possível que não passassem o ribeirão a vau, como pretendiam. Este cuidado levou-lhes o auxílio necessário na hora certa. Era uma boiada amarela e pesada, que atravessou a corrente e se colocou na outra margem, em posição de arrastá-los. Amarraram a máquina com o rabo de tiradeira do cambão e puxaram o Double Phaeton para o seco. Foi um grande alívio para os viajantes. Ronan agradeceu e gratificou o carreiro, enquanto José Sabino foi examinar o Ford e encontrou o cobertão esquerdo de trás com o cravo de carro de boi espetado e o friso no chão. Apanhou o estepe no leito do ribeirão. Avisou logo aos outros. “Olha aqui, gente, agora é consertar. Paciência.” Ao mesmo tempo que o chofer assentava o macaco para remendar a câmara, Ronan e Sidney foram providenciar fogo, janta e café. O empregado abriu o pneu, pôs a câmara de ar nova, deixou um manchão no lugar do furo, apenas solto, colocando ali dentro o capotão, e foi depois tratar do motor. Esgotou o óleo todo, jogando fora, enxugou as bobinas, levando-as para secar melhor junto ao fogo. Em seguida, enxugou também as velas e os fios. Tirou água do carburador, providenciou óleo novo, lubrificou o copo e o marlete do distribuidor. Viu que tudo estava em ordem, depois de duas horas de trabalho. Eram 6 horas da tarde. Os três trocaram idéia então sobre a continuação da viagem. “O rio dos Bois está daqui a duas léguas.” Resolveram entretanto, devido a aproximação da noite, dormir ali mesmo. Lugar bom, de vista bonita, agradável. Eles estavam cansados, mas ainda assim foram até o riacho e tomaram um belo banho. Depois matularam queijos, doces e bolachas na falta de farofa de galinha, que a essa altura já tinha se acabado. Fizeram a seguir as camas sobre um monchão mais perto, no murundum debaixo de árvores pequenas. Fogo aceso por ali, todos satisfeitos, cama boa, ouvindo a cachoeira, barulho de emas, lobo urrando nos gerais e piado de curiangos. Cada qual lembrou de uma coisa. Contaram histórias, recordaram as namoradas e às 20 horas, mais ou menos, com lua clara no céu, acomodaram-se para dormir. “Vamos dormir agora, já estamos cansados mesmo”, disse Ronan. “Assim a gente continua bem cedo”, concluiu um dos companheiros. Cerca de duas horas da madrugada mais ou menos, a lua continuava clara como o dia, quando formiga correição atacou a cama dos viajantes. Ronan acordou sapateando e dizendo: “Nós vamos embora. Vamos caçar outro lugar para dormir.” Estava fazendo muito frio, com bastante orvalho na vegetação, e formiga em cima.

- Como é, Sabino – perguntou Ronan – está animado pra viajar?

- Estou. Vamos embora. Quantas léguas tem?

- É capaz de ter umas duas léguas.

- Vamos embora.

Sabino botou o macaco na roda, virou a manivela do bruto, pegou fogo, esquentou e eles seguiram. Viajaram de luz acesa, corrente contínua, que só era clara na primeira marcha. Volta e meia o fordinho estava em primeira. Trechos ruins. Aquilo forçava um pouco o carro, mas dava pra prosseguir. A lua já se escondendo por trás das matas, escurecia, quando chegaram a certo morador da região. Lugar plano, cerradão. A casa era grande e velha. Pararam e Ronan gritou pelo dono do lugar. Responderam.

- Está muito longe o vau do Mariano?

- Não. Uma légua, mais ou menos.

Quase sempre, se falava assim a distância era maior. E neste lugar, ninguém se assustou com o ronco do motor, porque já tinham avisado que Ronan Borges e Sidney Pereira iam fazer aquela viagem temerária. O homem abriu a janela.

- Quer fazer um favor?

- Pois não.

- Tem aqui um remédio, o senhor entrega no vau pra mim.

Deu a garrafada de remédio para o Ronan entregar no Mariano a um doente, que tinha saído dali muito mal, com tifo, no dia anterior. Já eram 4 horas da madrugada, Ronan entrou no fordeco e prosseguiram a viagem. Quando Sabino percebeu pelos sinais do chão e das margens da estrada que estavam chegando ao porto, começou a tocar o gerico do carrinho. Um apito colocado no cano do silencioso, onde ele ficava alto como o sinal do trem de ferro. Assim foram chegando ao vau do Mariano. Era de terreno plano na margem do rio dos Bois. Curral do lado, casa de telhas com esteios, tipo da casa mineira, de pau a pique uma parte e outra de adobe. Criação de porcos, galinha e gado. Eram 5 horas da manhã, escuro ainda, bem frio, com fumaça sobre o rio. Mariano, que dera o nome à passagem, aparentava 50 anos de idade. Claro, barba cerrada e feita, bigodes grandes, homem corpulento, muito ativo e disposto, com bons dentes. Falava rápido. Sabino deu com o pé no acelerador e apitou, chegou apitando. Apareceram várias pessoas na porta. Três ou quatro homens. Logo veio Mariano que recebeu bem a caravana.

- Tenho aqui um remédio – foi dizendo logo Ronan – para o doente que está aí passando mal.

- Já foi.

Respondeu o dono da casa.

- Já foi embora?

- Não, já morreu. Olha lá do outro lado do rio o fogo.

Viu vestígios do fogo de um carreiro que tinha ido buscar o homem.

- Pois é, acabei de passar neste momento o corpo na balsa. Vai ser enterrado no Castelo, fazenda de Candido Queixada.

Lamentaram a falta de sorte do desconhecido e ficaram alongando a conversa com outros assuntos.

- Sabia que você vinha, Ronan. Eu recebi o recado.

Explicou o morador, com todos ainda de pé na porta de entrada.

- Este povo não espantou não, quando ouviu o barulho?

Quis saber Ronan.

- Não porque eu avisei: é o automóvel que ‘evem’ aí, deve ser o Ronan. O negócio pra quem não conhece mete medo mesmo. Ronca que nem o diabo!

Como Ronan insistisse em passar com o escuro, o homão ponderou:

- Vamos deixar clarear bem. Tem muita neblina.

José Sabino foi até a beira do rio sondar o terreno. Descida muito forte, cheia de pedras, não dava pra chegar normalmente. Mais ainda pela curva fechada na cava do barranco, por onde desciam os carros de boi a fim de pegar a balsa. Balsa chamada voga, a remo e varejão, sem cabo de aço. Devido a esta dificuldade, o chofer procurou outro local mais acima. A descida era forte também, com bastante pedra, em linha reta, sem curva e sem cava nos barrancos. Margem quase livre de árvores, mostrava apenas uma ou outra de porte grande. Ele verificou o local minuciosamente e logo voltou para junto dos companheiros, que continuavam a conversar com Mariano na porta da fazenda. Contou tudo ao patrão e lá foram eles com o automóvel para a margem do rio.

- Escolhi este lugar novo, mas não podemos descer aqui com o carro funcionando, porque ele pode tombar e leva tudo às brecas nas pedras.

- Então, como é que vamos fazer?

Indagou Ronan.

- Arruma uma corda, eu amarro no diferencial e vocês ajudam a ir segurando o carro para que ele desça macio, sem arrastar as rodas brecadas, senão tomba e danou tudo.

Ajeitaram a balsa no ponto ideal. Mariano trouxe a corda desejada, que se amarrou segundo recomendações e, com muito cuidado, José Sabino aboletou-se, tomou da direção e cada qual pegou em um lugar. Ronan segurando de banda, Sidney de outro lado, Mariano e os barqueiros firmes na tiradeira. Foram levando a pouco e pouco, bem devagarinho o Double Phaeton até a boca da balsa. Entraram na embarcação rústica, composta de duas canoas grandes. Havia três homens responsáveis por ela, um na voga ou leme e dois nos remos. Subiram cerca de 50 metros e depois foram atravessando em diagonal até alcançar o porto. Algumas dezenas de metros de água volumosa e pesada. Do outro lado a saída era melhor. Sem pedra, pouco declive, quase plano, com uma só inconveniência: muita areia. Areia branca, branca embaixo de várias árvores copudas. Era local de pouso de topa, limpo porém com restos de fogo que tinham avistado antes da outra margem, deixados pelos homens que levaram o cadáver.

60 anos depois: Ronan Rodrigues Borges virou placa e entrou para a História.

TERCEIRO DIA DE VIAGEM

A caravana despediu-se de Mariano e dos barqueiros, que não quiseram cobrar nada pelo trabalho, e continuou a viagem. Daí a uns cem metros atravessaram bela vargem, que tem o nome sonoro de lagrimal, e mais adiante encontraram outra numa distância de duzentos de largo. Úmida, muitos montículos, ou murundus, com lombadas sem pedra, capim bem verde, sem árvores. Enxergava-se longe. Só se viam alguns buritis. Nenhuma criação, nem bichos do mato. Deserto. O carro principiou a atolar, José Sabino examinou o terreno, deu marcha a ré e meteu o carro pra frente, engatado na primeira. O bicho sacolejou feio, mas saiu do outro lado no seco. Nesse ponto encontraram uma estrada carreira nova, cheia de tocos pequenos de taboca, e foram por ela. Era um cerradão fechado de cambaúba, plano, de terra vermelha. Pelas 9 horas, aproximadamente, chegaram, ainda no cerradão fechado, à porta de Candido Queixada, proprietário da fazenda Castelo, onde estava localizado o cemitério da região. Observaram a casa baixa, de telha comum, pau a pique, velha, mostrando parte barreada de estrume de gado e outra sem estrume, de pau liso. Casa de chão batido, com uma porta e uma janela. Ao lado, o curral de madeira roliça, bastante estragado, com forquilhas, gado ali na porta. Algumas reses, pois tinham acabado de tirar leite, e alguns animais de sela. Do lado direito da morada, existia o rancho de tropa, coberto de palha de buriti, sem paredes. Quando chegaram, pelo barulho do auto que ia apitando o gerico, já estavam algumas pessoas à porta. Espantadas. Ressabiadas. Candido Queixada aproximou-se do Ford, assim que ele parou, cumprimentou os viajantes e saiu-se logo com uma história.

- Bom dia pessoal, apeia. Mas não lhe conto nada, aqui chegaram faz pouco tempo dois cavaleiros, que ficaram esquentando fogo lá no rio, e disseram que ouviram trovões e relâmpagos, de vez em quando misturados com gritos, no meio da madrugada coberta de neblina. Viam relâmpagos e escutavam a trovoada. Eles não sabiam se era bando de queixada ou se era trovoada. Trovoada não podia ser, porque não é tempo e o céu estava limpo. Um dos companheiros dizia “pode ser a mãe do ouro, olha o risco de luz por cima do arvoredo”. Os dois disparavam os cavalos, paravam um pouco e tornavam a escutar o mesmo barulho com alguns estrondos por cima, pra complicar mais ainda a situação. Os dois chegaram aqui afobados, com os animais em bica, e vieram me contar. Pensaram até que era a alma do defunto.

Ronan e seus amigos deram boas gargalhadas com o caso, enquanto Queixada explicava: “bem que eu disse pra eles, deve ser o Ronan com o automóvel...” Estavam já fora do carro conversando, quando algumas pessoas desconfiadas foram se aproximando, pondo a mão no veículo com muito medo. “Pode chegar gente, que não tem nada não. É manso” – explicou Ronan. Outros tiveram curiosidade de ir andando pelo caminho, olhando o rastro bordado, o relevo dos cobertões. Agachavam comentando “parece pé de moleque”, por causa dos quadradinhos do relevo dos pneus. Uma das mulheres de gola afogada, saia de cós muito comprido, chinelos e paletó de homem, nova ainda, clara e viçosa, com o cabelo em coque, perguntou:

- Posso entrar por baixo e ver a barriga dele?

Ronan achou graça.

- Pode, pode entrar.

E continuou a conversar como se não estivesse observando-a agachar-se embaixo do fordeco. Quando sumiu sob a ferragem, ele bateu com as mãos no paralama esquerdo da frente, fazendo grande barulho na lataria frágil. A curiosa assustou-se e saiu apressada, engastalhando a saia nos ferros que a rasgaram ruidosamente, provocando risos em todos os presentes.

- Bem, comentou o chefe da excursão, a prosa está boa mas nós chegamos com fome, faz dois dias que não comemos comida de sal, vamos dar um jeito de arrumar alguma coisa para comer. Nós precisamos viajar logo e ver se chegamos ainda hoje a Rio Verde.

- Espera, disse Candido Queixada, vou mandar fazer.

- Não, arranja só um leite com farinha, qualquer coisa rápida.

- Se é assim, está fácil. Vamos entrar e comer leite com farinha.

Encaminharam-se para a sala modesta, de chão batido.

- Vamos entrar vá para a varanda.

Insistiu o fazendeiro que ia na frente. No momento em que os viajantes entraram, tomados de muita fome àquela altura, viram com espanto algumas pessoas em silêncio guardando o cadáver do homem, que tinha morrido de tifo na véspera. Homem branco, vestido pobremente, pés descalços. Era o dono da fazenda de onde tinham trazido a garrafa de remédio. Lá estava espichado em cima da mesa, sem nenhum pano por cobertura. Nem velas não tinha. Escorria uma baba verde-claro da boca do cadáver enrigecido. O proprietário virou-se para os que velavam o corpo:

- Pega aqui, gente, nos pés do homem. Vamos tirar daqui pra fora, modo estender a mesa pro seu Ronan e os companheiros tomarem leite.

- Não, não, nada disso – ponderou logo o comerciante – não se incomode. Nós vamos comer lá no terreiro mesmo...

E foi saindo com Sidney e José Sabino. Candido Queixada, homem muito simples, concordou, sem perceber talvez o susto que pregou nos convidados. Com a mesma naturalidade, apanhou uma toalha e foi de volta para a entrada da casa, perto do automóvel. Raspou o chão coberto de estrume seco de gado com as mãos, fez um limpo e estendeu o pano branco em cima. A mulher e ajudantes trouxeram a tigela esmaltada com leite, cuia de farinha de mandioca e os pratos com colheres. Imediatamente, os viajantes começaram a se servir de cócoras, enquanto os moradores foram observar melhor o Double Phaeton.

- Oh gente – comentou Ronan, com o prato na mão – não posso nem me lembrar daquela baba que eu vi lá dentro. Meu estômago não está aceitando o leite. – Coçou a cabeça.

- Vamos beber sem farinha que é mais fácil.

Opinou Sidney Pereira. Entreolharam-se desanimados, com receio de ofender o fazendeiro e José Sabino, que já estava comendo a papa de leite e farinha, sentiu o alimento crescer na boca. Não passava pela garganta de jeito nenhum. Entre os homens famintos e os pratos esmaltados, surgia de repente o cadáver endurecido com a sua baba esverdeada e repugnante. Com muita dificuldade beberam o leite sem a farinha e trataram de viajar quanto antes. José Sabino pôs água no radiador, abasteceu o fordinho de gasolina e óleo, verificou as rodas e viu que tudo se achava em ordem. Chamaram o fazendeiro para agradecer e tomar informações sobre a região daí pra frente. Candido Queixada deu péssimas informações à cerca do terreno que iriam atravessar.

- Lugar muito sujo. Estrada carreira de mau estado. Alguns topes de chão bem ruim.

- Lugar pior – comentou Ronan – nós atravessamos do Meia Ponte ao rio dos Bois. Este dá pra nós chegarmos lá. Não é tão ruim assim...”

Até aqui dá pra notar o quão interessante é o livro. A viagem prosseguiu por mais alguns dias, outros contratempos surgiram durante o percurso, mas o objetivo foi alcançado. Tudo está no livro.

É uma pena que obras como essa não sejam reimpressas para o conhecimento do novo público existente.

Quem tiver interesse no livro, uma boa procura pelos sebos da cidade pode resultar em sucesso na procura de exemplares antigos (como foi o caso do meu).

PC Castilho