RONCADOR-XINGU
A HISTÓRIA REGISTRADA EM FOTOS
O acampamento da barranca é hoje a cidade de Xavantina.A nascente Aragarças, antiga Barra Goiana, estava surgindo nas terras do Pio de Barros. O ministro João Alberto, para evitar futuros aborrecimentos, resolveu comprar a gleba. O negócio não foi fácil. O velho Pio de Barros, que vivia dos seus negócios de pequeno criador, passou a olhar com desconfiança aquela gente nova interessada nas suas terras. Chamado para uma conversa, Mané Pio compareceu arredio, ouvindo muito, mas falando pouco. - Seu Maná Pio. Estamos querendo comprar as suas terras para construir uma cidade. O que o senhor acha disso? – perguntou o ministro. - É... depende – respondeu o velho. - Temos duas propostas – ponderou o ministro. - Duas? – indagou o velho. - É preciso que o senhor repare, estude bem e escolha aquela que o senhor acha melhor – voltou o ministro. - Entonce pode falar. - Na primeira nós oferecemos cinqüenta contos de entrada e cinco contos por mês enquanto o senhor for vivo. - Essa num tá ruim. E a outra? – indagou o velho. - A segunda nós damos oitenta numa pancada só, ficando assim tudo liquidado – concluiu o ministro. Mané Pio coçou a cabeça, fechou os olhos e olhou para o ministro. - Olha, siô... a premera é boa pra dana, mas o mio mesmo é dá logo os oitenta... sei lá! O negócio foi fechado.
Restava agora conhecer os limites da gleba. Não havia um só documento que especificasse. Croquis, então, nem se fala. Houve uma descrição oral, rápida e sem rodeios. - Vosmicê desce o Araguaia até a boca do Rola (córrego). Daí sobe por ele arriba até as divisa do compadre Mané Bunda. Di lá vira às direita até a Serrinha que di lá inté dá pra enxerga. Chegano lá torna a virá as dereita e ruma até o Araguaia. Divisa cantada, negócio fechado. O dinheiro não demorou. Melhor mesmo teria sido se o velho tivesse aceitado a primeira proposta, pois viveu bem um punhado de anos depois do acerto.A Barra Goiana, hoje Aragarças, era uma corruptela garimpeira no começo. E nela vivia os “capangueiros” – os compradores de diamante ou donos de garimpo. Pedro Martins era um dos mais fortes compradores e, além disso, tinha uma casa comercial. Sua moradia, feita de taipa e adobe, era uma das melhores da vila. Bem barreada e pintada, chamava a atenção.
O ministro João Alberto toda vez que ia à vila visitava Pedro Martins. Certa feita, o ministro e uma figura ilustre da embaixada da Espanha foram visitar a vila. Como não podia deixar de ser, a casa do capangueiro foi a primeira a ser mostrada ao visitante. Pedro Martins os recebeu na porta, e caminharam para a sala espaçosa. Lá dentro a visita, depois de ouvir do ministro como eram feitas as casas assim, uma construção puramente cabocla, virou-se para o dono da casa e indagou, num espanhol aportuguesado: - Bueno, bueno, esta casa é suya? Pedro Martins, ofendido, retrucou à altura: - Suja, não, sinhor. Tá muito da limpa, e o senhor me arrespeite! O ministro, que presenciou o diálogo, riu, apaziguador, e explicou ao ofendido dono da casa que ele ouvira mal, não era suja de sujeira o que disse o visitante. - Senhor Pedro, ele só queria saber se a casa é sua.
É comum ouvir-se nas conversas das gentes do sertão a pronuncia de certas palavra de maneira muito complicada. Numa conversa entre duas vizinhas, uma delas contava à companheira que havia espetado acidentalmente um prego enferrujado na mão e que o homem da farmácia consultado recomendou uma “valcina para tetrano”, o que levou a outra a corrigir: - Num é tetrano que a gente fala, é teto (tétano).Salomão tinha uma dor de dente crônica que não o deixava longe do ácido fênico. Tanto ia à farmácia da Base que o chefe médico Dr. Vahia resolveu incorporá-lo definitivamente ao ambulatório como enfermeiro. Ambulatório era o nome, em verdade era uma salinha com janela entelada, uma mesinha que suportava um estojo de metal com alguns instrumentos ligados à medicina: bisturi, pinça, espátula, tesoura, um rolo de gaze e outro esparadrapo. Embaixo da janela uma modestíssima mesa de curativo. Um fogareiro ”primus” fervia o “instrumental” cirúrgico. Coroando isso tudo, sem contar com o enfermeiro, que não distinguia uma cafiaspirina dum supositório, dos doutores mestres ali faziam milagres: Dr. Estilac e Dr. Vahia de Abreu.
Numa tarde quente o Dr. Estilac lia algo filosófico, enquanto seu colega jogava paciência com um surrado baralho, quando entrou esbaforido o enfermeiro Salomão. - Seu douto, a tripa do roxo espocô. - Que tripa? Que roxo? Espocou o quê? Fale devagar e explique direito – Advertiu o Dr. Vahia. - Chegou na farmácia uma pai-d’égua (grande) de roxo (preto) com o bucho estufado. O tar tá numa gemeção... dois cumpanheiro truxeram êli. Os dois médicos mais que depressa, saíram para a enfermaria. Lá esticado no chão, gemendo e se contorcendo, um espadaúdo negrão. Os doutores puxaram a mesinha de curativo para o meio da sala e pediram aos dois acompanhantes que puseram o doente em cima da mesa e que não largassem dele um instante. Em rápidas apalpadelas o mal foi diagnosticado: hérnia “estrangulada”, ou “espocada” no diagnóstico de Salomão. - Vamos operá-lo – resmungou o Dr. Vahia. - É o jeito – concordou o Dr. Estilac. - O pior é que não há nem sombra de anestésico – acrescentou o primeiro. - Pra dor nóis tem cafiaspirina – esclareceu Salomão -, aquele do guaiacol! - Problema sério – concluiu o Dr. Estilac . - Anestesia “contensiva”: gente para segurar o moço. Tudo depressa, porque o motor da luz está ruim e já, já escurece. Zétola, radioperador, saiu e trouxe cinco “anestésicos” fortes, um em cada perna, um na cabeça e um em cada braço. Tudo pronto. O Dr. Vahia abriu a barriga do “roxo”. Ele embocava o corpo e desmaiava. O motor voltou a pifar. - Luz – gritou o Dr. Vahia. Salomão saiu correndo e trouxe um lampião “sonâmbulo” – o nome por si já diz, era o pior possível. - Luz – voltou a gritar o Dr. Vahia. O vivo Salomão saiu e voltou com duas velas. O Dr. Vahia, suando em bica, instruía: - Pra cá, seu bunda, pra lá, seu bunda! O “roxo” voltava a si e era uma dureza mantê-lo na mesinha. Na qual não cabia nem uma perna. Terminada a operação, faltava agora, fechar a barriga do “roxo”. O calor insuportável sugeriu que se abrisse um pouco a porta. Dito e feito, ordem é ordem. Aberta a porta, entrou, atraída pela luz, uma enorme mariposa! A dita deu um mergulho nas tripas do crioulo. O Dr. Vahia xingou a mãe da mariposa e lavou como pôde as tripas do “roxo”. A costura foi rápida. Não foi bem uma costura, mais um alinhavado! O Dr. Vahia esquecera que o enfermeiro era o Salomão do guaiacol e recomendou: - Amanhã cedo você faz uma lavagem com um irrigador usando este pozinho. Tudo terminou. O “roxo” anestesiado dormiu. De manhã Salomão pegou um regador, encheu d’água, pôs o pozinho e deu uma lavagem de corpo inteiro no crioulo. Ele variando saiu, caiu e arrebentou os pontos. O Dr. Vahia, xingando toda a geração de Salomão, suturou outra vez. O “roxo” resistiu a tudo. Nesta altura do tempo, quarenta anos passados (o artigo foi escrito nos anos 90), deve ser um “roxo” velho tomando suas cachacinhas nos botecos de beira-rio.O Dr. Vahia tinha um cliente do outro lado do Araguaia. O filho da doente tinha uma canoinha que transportava gente de um lado para o outro. Toda tarde o Dr. Vahia pachorrentamente ia até a beira do rio, tomava a embarcação do mocinho, dava uma injeção na velha e voltava. Fez isso vinte dias. Até que no último avisou o filho da doente: - Sua mãe já está boa, não preciso mais ir lá. Você não tem nada para me pagar, não cobro nada. - Sim, senhor – respondeu o mocinho. – O senhor trevessou o rio vinte veis, a dez tostões, são vinte mil réis. - E você tem coragem de me cobrar, seu bunda? - Uai, nóis veve disso... O Dr. Vahia enfiou sua mão no bolso, tirou os “vinte”, deu pro mocinho e saiu resmungando.