sábado, agosto 28, 2021

MINHA VIAGEM AO XINGU

 

I

AVENTURA NA CABEÇA


O meu gosto pela aventura vem desde a minha fase de criança, como acontece com a maioria das pessoas, só que comigo parece que a coisa foi mais forte e ficou impregnada. A minha imaginação viajava com os filmes que eu assistia e logo depois eu tentava replicar nas minhas brincadeiras tudo aquilo que eu havia assistido na televisão.



Em 1973, quando eu morava na Vila Redenção, em Goiânia, eu, na época com 8 anos de idade, e a turma da nossa rua fomos ao Cine Santa Maria, no centro da cidade, assistir ao filme JASÃO E O VELO DE OURO, uma produção britânica de 1963 que só chegaria ao nosso cinema dez anos depois, muito diferente dos dias de hoje, quando os lançamentos são praticamente simultâneos.

Pélias usurpa o trono da Tessália matando o rei Esão. Uma profecia, no entanto, dizia para que Pélias tivesse cuidado com um dos filhos de Esão, que apareceria usando uma sandália só e o destronaria. Para evitar a profecia, Pélias mata uma das filhas de Esão, não antes dela pedir a intercessão da deusa Hera, esposa de Zeus. A partir dai, Pélias faz de Hera sua maior inimiga.

Anos depois, Jasão, filho de Esão, salva a vida de Pélias em um encontro casual e perde a sandália na ação. Jasão não reconhece o assassino de seu pai mas este, sim. No entanto, Pélias está impedido de matar Jasão, já que a profecia diz que, se fizer isso, ele mesmo morrerá. Conversando com Jasão, descobre que este está pensando em partir numa jornada perigosa em busca do Velo de Ouro, na verdade a pele de um carneiro divino ao qual se atribuia poderes mágicos de cura. Pélias o encoraja. Jasão percorre então toda a Grécia, reunindo heróis que o acompanhem na aventura, entre eles o semideus Hércules e Acasto, filho de Pélias, mandado pelo pai para sabotar a viagem. Encomenda ainda ao construtor Argos um navio para transportar a ele e aos companheiros em sua jornada. Jasão dá ao barco o nome de Argo, em homenagem ao construtor; seus tripulantes passam então a ser conhecidos como "os argonautas".

Um pouco antes do embarque, Jasão é levado ao Monte Olimpo por Hermes para conversar com Zeus e Hera. Esta promete ajudar Jasão mas Zeus restringe essa ajuda (Jasão, como todos os mortais, é reconhecidamente uma peça no jogo que os deuses jogam entre si. Este é um retrato acurado da teologia grega, raramente encontrada atualmente). Assim, Jasão fica restrito a invocar o auxílio da deusa apenas cinco vezes e fica sabendo por ela que o Velo de Ouro realmente existe e que se encontra na Cólquida, reino estabelecido do outro lado do mundo.

Os argonautas enfrentam muitos perigos durante a viagem. Calmarias fazem Jasão pedir a ajuda de Hera pela primeira vez; ela os guia para a ilha de Bronze, antiga oficina do deus Hefesto, onde os argonautas se confrontam com a gigantesca estátua de bronze de Talos. Procuram a seguir pelo adivinho cego Fineu para que ele lhes indique o caminho correto para a Cólquida e livram-no do ataque diário de duas Harpias, que roubam-lhe as refeições por ordem de Zeus, para puni-lo pelo mau uso de seu poder. Fineu então lhes indica o caminho, passando pelas Simplégadas (o estreito do Bósforo), onde o desmoronamento de rochas ameaça matá-los. Fineu ainda lhes dá um amuleto, que, ao ser jogado ao mar, invoca um Tritão que, segurando os lados do estreito, auxilia-os na passagem.

Depois de todas essas peripécias, os argonautas chegam à Cólquida e, com a ajuda da princesa Medeia, conseguem, por fim, matar o dragão que vigia o Velo, apoderar-se dele e fugir da fúria de Eetes, rei da Cólquida, que faz brotar dos dentes semeados do dragão morto um exército de esqueletos que ataca os heróis.

Saí do cinema extasiado. Todas aquelas criaturas fizeram com que minha imaginação “voasse alto”.



Outro fator que alimentou muito minha imaginação foi quando ganhei um Forte Apache, da Gulliver. Era uma réplica em madeira dos fortes americanos, usados como base da cavalaria americana. O kit era composto também por várias figuras em plástico de índios e soldados. A imaginação rolava solta e eu podia criar várias situações com aquele brinquedo: o forte poderia ser atacado por índios, revoltados com a invasão de suas terras pelos brancos; Custer sairia em busca da glória em sua tentativa insana de vencer os índios... Situações e mais situações eram criadas a cada dia em que eu tirava todas aquelas peças da caixa. Depois de brincar horas e horas seguidas, cada peça era lavada e enxugada, uma por uma, antes de serem colocadas de volta na caixa. Posso sentir até hoje aquele cheiro característico da madeira e plástico que exalava da caixa sempre que eu a abria.

Lógico, para enriquecer o meu "repertório de aventuras", eu sempre assistia ao seriado Rin-tin-tin, que eu usava como inspiração e criava minha própria versão com os soldadinhos de plástico.



Em 1978, já morando em Aloandia, a Brinquedos Estrela lançou o boneco Falcon. Era um brinquedo caro, completamente fora do poder aquisitivo de minha família, mas sabem como é criança, eu tanto insisti que minha mãe acabou comprando um para mim, em uma de nossas viagens até a cidade de Goiatuba.

Falcon passou a ser o meu melhor amigo, companheiro de aventuras. No município existia uma cachoeira chamada Itambé. Ficava distante de Aloandia e praticamente não era visitada por ninguém. Mas é claro que eu e o Falcon não poderíamos deixar de lado essa aventura. Eu tinha uma bicicleta Monareta (da Monark), na qual eu amarrava uma caixa de sapato na garupa, forrava com um pano e ali colocava o meu boneco. Peguei minha máquina fotográfica Tira-Teima e fomos para o Itambé. Lá iniciamos nossa aventura: desci o Falcon no precipício, amarrado em um longo barbante. Deitado na beira daquele barranco, comecei a tirar várias fotografias do meu “amigo” lá embaixo. Na medida que ia subindo eu registrava o momento com um clique.

Nem é preciso dizer que a minha ida até essa cachoeira foi escondido da minha mãe, que sabendo do perigo no local, não permitia que eu fosse até lá.

Inocentemente, certo dia, sabendo que ela iria viajar até a cidade de Goiatuba, pedi a ela que levasse o meu filme fotográfico para ser revelado, uma vez que em Aloandia não existia laboratório fotográfico. É bom ressaltar que nessa época não existia as revelações em 1 hora. Era preciso deixar o filme e buscar dias depois.

Na viagem seguinte, ao pegar as fotografias e ver aquele abismo onde Falcon se enveredou, sustentado apenas por um cabo (barbante), me questionou que lugar era aquele. Ao afirmar que eu havia ido ao Itambé com o meu amigo Falcon, levei uma surra e uma bela lição de moral... e ainda fui obrigado a jurar que nunca mais voltaria lá com minhas ideias aventureiras.

Mas não parou por aí. Quando a propaganda da Estrela ia ao ar na televisão e eu vi que Falcon também participava de aventuras submarinas, decidi que era hora do meu boneco ter a sua chance em um dos muitos córregos que cortam o município. Dessa vez escolhi um bem perto, um pequeno riacho que cortava as terras de uma fazenda próxima. Estávamos mergulhando naquelas águas cristalinas, eu e o meu amigo Falcon, quando avistei no fundo do pequeno manancial, que tinha areia clara no fundo, alguns pontos alaranjados. Escolhemos aquilo como objetivo e mergulhamos até os tais pontos alaranjados. Ao me aproximar, para o meu espanto (para não dizer pavor) descobri que se tratavam de pequenos caranguejos. Nem é preciso dizer que saímos dali o mais rápido possível, e o que é mais importante, sem tirar nenhuma fotografia, para não nos incriminarmos.



Quando eu estava cursando a quarta série, a minha professora passou como trabalho a leitura do livro A SERRA DOS DOIS MENINOS, DA COLEÇÃO Vaga-Lume, de autoria de Aristides Fraga Lima. O livro vinha acompanhado de um caderno de exercícios que seria usado após a leitura do mesmo. Esse foi o primeiro livro que li na minha vida e posso garantir que comecei muito bem.

O livro narra a viagem de uma família ao interior da Bahia, onde o pai, o senhor Domingos, havia comprado uma fazenda e decidiu que a família passaria ali oi verão. Ao chegarem na região, as crianças logo perceberam a existência de uma enorme serra e lá no alto havia um cruzeiro de madeira. Tiveram a ideia de dar uma escapadinha e subir na serra. Acabam se perdendo e tendo que passar a noite por lá. Uma aventura e tanto que acabou atiçando a minha vontade por fazer algo igual ou parecido. Chamei quatro coleguinhas e fomos para a fazenda do avô de um deles, onde tinha uma serra com boa mata preservada. Passamos a noite por lá. Fomos atacados por formigas e passamos a noite em claro, com medo dos barulhos na vegetação que rodeava nosso acampamento. Foi a minha primeira experiência de "wild camping".


Cachoeira no rio Meia Ponte, entre os municípios de Goiatuba e Panamá.

Em 2003, já na minha fase adulta, decidi comprar uma canoa de fibra de vidro e desbravar o rio Meia Ponte, que corta o nosso estado de Goiás. O rio nasce no município de Itauçu, na Serra do Brandão e em Taquaral. Outros municípios banhados pelo rio são Santo Antonio de Goiás, Brazabrantes, Goianira, Nova Veneza, Inhumas, Itauçu, Aparecida de Goiânia, Bela Vista de Goiás, Senador Canedo, Hidrolandia, Professor Jamil, Pontalina, Aloandia, Goiatuba e Panamá. Fizemos o percurso de Goianira até Panamá. A ideia era chegar à foz, no rio Paranaíba, que faz divisa com o estado de Minas Gerais, mas havia uma cachoeira no nosso caminho. Foram várias viagens pelo leito desse importante rio, na companhia de diversos amigos: Ronilson Machado, Hugo Leonardo, Donato Domingos, Roberto Baccin e Ernesto Renovato. Costumo dizer que meus convidados parecem não gostar da aventura de descer remando. O único que teve a capacidade de remar mais de uma vez comigo pelo Meia Ponte foi o amigo Ernesto. Tais viagens, alternando com outros mananciais (rio Dourados, Lago Serra da Mesa) se tornaram frequentes até o ano de 2011.



No ano de 2001, tive a honra e o prazer de me tornar amigo do professor e historiador Paulo Bertran, que me convidou para fazer parte de uma expedição que ele estava prestes a fazer na Cidade de Pedras, na região de Pirenópolis. Descoberta em 1871, pelo Dr. François Henry Trigent dês Genettes, médico e naturalista francês,  a Cidade de Pedras foi redescoberta pelo professor Bertran em 2002, sendo considerada uma das maiores do país, ocupando uma área de 500 hectares na Serra de São Gonçalo, ao lado da Serra dos Pirineus. A expedição foi patrocinada pelo Governador Marconi Perilo.

Em 2003, após ler o livro “A História de Niquelândia – Do Julgado de Traíras ao Lago Serra da Mesa”, de Paulo Bertran, fui atraído a conhecer o citado extinto arraial de Traíras. Fui até lá, fotografei os restos de antigas construções e, em uma conversa posterior com o professor Bertran, planejávamos outras possíveis viagens que eu poderia fazer e que iriam auxiliá-lo em seus trabalhos. Infelizmente, no dia 3 de outubro de 2005 o professor Bertran nos deixou prematuramente, aos 56 anos, após uma parada cardiorrespiratória.

Em 2008, após ler um livro da professora Mari Baiocchi, que falava sobre o Quilombo dos Kalungas, fiquei interessado em conhecer a região. Por sorte um parente da minha esposa acabara de adquirir umas terras próximas dali. Era a minha oportunidade. 

Para chegar ao local, realizei uma viagem de ônibus até Santa Tereza de Goiás. De lá, fui a pé até Cavalcante, numa caminhada de 22 quilômetros. Durante oi percurso, vários veículos pararam para me oferecer carona, mesmo eu não fazendo nenhum sinal para eles. Como eu queria conhecer a região, recusei as ofertas e fiz todo o percurso caminhando. Confesso que foi muito prazeroso; pude visitar um antigo cemitério na beira da estrada, presenciei a travessia da estrada realizada por uma pequena cobra e pude visitar belíssimas praias de águas cristalinas do Rio das Mortes.

A ideia de fazer tal caminhada surgiu após eu ler o livro ITINERÁRIOS, de Raimundo José da Cunha Matos, de 1823. O autor passou pela região, após ter saído do Rio de Janeiro com destino ao Maranhão. O livro é o seu diário de viagem, onde ele descreve detalhes dos lugares por onde passou, inclusive que podem ser identificados até hoje. Fiz o caminho inverso dele entre Santa Teresa de Goiás e Cavalcante, mas pude conferir todos os córregos pelos quais ele passou (em seu livro ele descreve a caminhada mais ou menos assim: "Caminhei por tantas léguas e passei sobre o córrego tal utilizando ponte improvisada com troncos de madeira).

Para chegar ao meu destino tive que utilizar o transporte em um "Pau-de-Arara", que saia de Cavalcante com destino a Minaçu. Fiquei acampado no alto de uma das várias serras da região por oito dias.


Expedição ao Xingu de 2008. 


No ano de 2006, tive a honra, o prazer e a sorte de conhecer Sergio Vahia, um verdadeiro aventureiro no qual passei a me inspirar. Na época eu trabalhava com conversão de áudio (análogo para digital) e fui procurado por ele para converter uma fita cassete para um CD. Eu estava lendo o livro EXPEDIÇÃO RONCADOR-XINGU, dos irmãos Villas Boas. Ao chegar na casa do Sergio, ele foi me contar que no cassete havia a narrativa de um índio que nos anos 50 foi companheiro de aventura de Sergio no Xingu. Como eu estava lendo o livro dos irmãos Villas Boas, aquela conversa me interessou bastante e fomos nos aprofundando no assunto. Quando ele falou que o pai dele havia sido médico da expedição, houve o seguinte diálogo:

- O senhor é filho do Dr. Vahia?

- Ué, você conhece o meu pai?

- Estou lendo um livro sobre esta expedição?

Nesse momento, Sergio abre uma gaveta e me mostra um exemplar do mesmo livro que eu estava lendo. Dali pra frente a nossa amizade foi se fortalecendo a cada dia. Posso afirmar sem medo que Sergio é pra mim muito mais que um amigo, é o pai que eu não tive e o meu aventureiro de inspiração. Devo muito a esse homem e se eu cheguei até aqui, foi graças a ajuda e apoio dele.

Fizemos um resgate histórico de todo o material fotográfico que Sergio guardava em suas gavetas, realizamos várias viagens ao Xingu e até ajudei na produção de seu livro biográfico, DA MATA ATLÂNTICA AO XINGU.

Em 2008, após toda essa ebulição causada pela nova amizade, acabaram produzindo um documentário sobre os 50 anos da Remarcação do Centro Geográfico do Brasil, do qual Sergio Vahia era um dos remanescentes. Fui premiado com o convite de fazer parte da nova expedição. Infelizmente só pude acompanhá-los até o rio Kuluene. Na época, minha filha caçula, Ana Clara, enfrentava sérios problemas ortopédicos e eu precisava estar presente para auxiliar minha esposa nos cuidados que ela exigia.

Três anos depois, o inquieto Sergio resolve fazer uma nova expedição, dessa vez saindo da aldeia Suiá, através do rio Pacas, que é tributário do rio Suiá-Missu e que por sua vez deságua no imenso rio Xingu. É justamente sobre essa expedição que iremos falar no próximo capítulo.