UMA AVENTURINHA QUE QUASE TERMINA EM TRAGÉDIA
O relato do transporte de um pequeno veleiro de Salvador (BA) para a Marina da Glória,
no centro do Rio de
Janeiro, que quase terminou em tragédia.
Por Sergio Vahia
Revisão: Comt. Dr. Mauricio Lougon
O veleiro Brasília.
Não sei por que comecei a relembrar de uma viagem que fiz, mais ou menos no ano 1980, e que quase acabou em tragédia. Consistia trazer um veleiro de pequeno porte, de fibra de vidro, medindo 8 metros (Brasília 27 pés) de Salvador para Marina da glória, centro do Rio de Janeiro.
Portanto, certo dia, numa mesa de bar daquela Marina, os proprietários da embarcação (ambos pilotos de
aviação comercial), completamente desconhecidos para mim, me contrataram para buscar o veleiro em Salvador.
Deveriam me pagar, acredito (já lá vão décadas) um dólar por milha percorrida. Tarifa da época. Me permiti ser contratado, não por ganância, mas por puro prazer de ter a “Glória” de trazer para Marina, um barquinho de tão longe.Talvez resquícios de infantilidade. Não foi uma simples brincadeirinha, com relato adiante.
Para
mim, seria mais uma pequena aventura se levarmos em conta a minha relativa
tumultuada vida. Como prova escrevi uma sucinta auto biografia contendo 115
fotografias, intitulada com absoluta propriedade “Da Mata Atlântica ao Xingu”.
Convidei primeiro, o Maninho, afro-cabista (cabista é o nome popular de quem nasce em Arraial do Cabo) de nome Paulo Cesar Santos Ramires, morando no Arraial no bairro Macedônia. Tinha aproximadamente uns 30 anos. É meu “marinheiro” desde seus 9 anos. Nove mesmo. Convidei também o Guga (Ricardo), grande amigo da Marina, com uns 50 anos. Considerado sem preguiça, entendido em convés de barcos de pequenas velejadas. Havia um porém, não se situava nadinha em posições geográficas, localização. Nada. Zero. Isso não tinha importância alguma porque o navegador e comandante seria somente EU.
Tempos
depois Guga foi assassinado, sem qualquer motivo, num assalto. Senti muito a
sua morte. Me dava muito bem com ele.
Depois de tudo combinado e tratado, partimos por terra num ônibus da Itapemirim para salvador. Parava de três em três horas. A viagem levava 28 horas. Que saco!!!! Quanta alegria para mais uma partida. Mais uma aventura. Por ser longa a viagem, procurávamos conversar o máximo, contando e recontando histórias. Mentirinhas inocentes. Algumas verdades outras nem tanto. Tínhamos que quebrar a monotonia de qualquer jeito naquela situação braba de achatar o rabo.
O Guga, que sempre foi um grande conversador, logo logo fez amizade com uma simpática baianinha, de uns 30 anos, nossa vizinha de poltrona, também muito conversadeira. Então, ela nos contou, dentre outras mentirinhas, que na casa dela havia um papagaio que falava tudo. Afirmou que, um dia, a sua irmã mais nova combinara com o namorado que iam fugir, dia tal, hora tal.
Entretanto, o papagaio escutou tudo. Pouco tempo depois, numa madrugada, no momento exato da fuga, o papagaio danou a gritar bem alto, e repetidas vezes: “fulana vai fugir com o namorado! Fulana vai fugir com o namorado!” Todos da família acordaram, inclusive um raivoso e moralista pai. A fuga foi abortada e a “imoral” certamente foi devidamente castigada. Tempos depois, a “sacana” menina, ainda com muita raiva, matou o papagaio e o comeu cozido.
Chegando a Salvador fomos direto ao barco no Iate club do Farol da Barra. Que chique! Estava amarrado a uma boia distante uns 30 metros do cais de pedra. No barco constatamos que de fato tinha tudo que era necessário. Tudo como nos fora dito pelos donos na hora da contratação. Entretanto, depois, para nosso espanto e tristeza, vimos que nada funcionava. Nadinha. Até o inflável, peça indispensável em caso de emergência, tinha vários furos. Ele é necessário para salvaguardar vidas, e de grande utilidade para se ir em terra com facilidade, colher informações sobre o tempo, telefonar para nossas famílias e fazer compras de mantimentos e equipamentos.
Perdemos um bom tempo em terra procurando cola para tapar o buraco do inflável. O seu reparo era necessários, mas não conseguimos encontrar a cola apropriada.
O
motor existia, justiça seja feita, nunca falhara, em compensação sua hélice era
muito pequena. A velocidade resultante, tão importante para nós, ficaria bem
reduzida. Talvez menos de dois nós (Nó é unidade padrão de velocidade usada
pelas marinhas do mundo todo. Equivale percorrer uma milha em uma hora).
No clube, eu dormia no próprio barco, que ficava bem na barra, lá fora, onde as águas se rebojam muito, me balançando estupidamente. Mas isso pouco me incomodava. Rebojar é o balançar desordenado das águas do mar. Os meus dois companheiros se instalaram em beliches confortáveis de lanchas de luxo, guardadas e esquecidas em terra.
A
espera, quando se está à toa, é terrível e perigosa pois pode causar rupturas no
saco. Só a “chopada” à tardinha nos consolava um pouco no bar do clube.
Já ia
me esquecendo de comentar aqui neste texto os inúmeros tombos que tomamos durante
toda a viagem dentro do barco. Alguns até com a possibilidade de quebrar um
braço. Foi por pouco. Simplesmente eram provocados pela escorregadia mistura das águas salgadas vazada pelo eixo da hélice (sei que hélice é masculino) com o
óleo diesel vazado do motor. Não tínhamos capacidade de consertar nada. Quando
o nível daquela mistura alcança e supera os dos paineiros (peça móvel de
madeira que fica no chão do fundo dos barcos. É onde se pisa e anda por cima
deles), aí fica um corredor com assoalho tremendamente escorregadio. É pura
“vaselina de quiabo”. Um tombo dentro de barco é perigoso. Existe várias
quinas. O balanço natural dos barcos (de um lado para outro) acontece graças ao
movimento eterno das ondas, é óbvio. Tal sacolejo, somado a uma distração no
andar ou a uma pisada mal dada, representa mais um tombo. Às vezes com direito
a machucados, alguns quase sérios. A meu ver , a culpa disso tudo se deve a um
defeito de fábrica . Desculpe me aos engenheiros. Acontece quando a face superior
do paineiro fica muito próxima do casco do barco. Qualquer vazamento, mínimo que
seja, faz com que o nível da água vazada alcance e supera logo a face superior
do paineiro, a água se esparrama. Uma pisada em cima dá direito a uma bela
queda. Simples assim. Fica assim armada a “armadilha”. Vivíamos o tempo todo sempre
em estado de alerta para não cair. Sempre onde e como pisar. Cansativo “paca”.
Voltando. Até que um dia o tempo melhorou para nós. Enfim “decolamos”. Porém, soubemos (em Ilheus) que havia uma frente fria no Rio Grande do Sul. Todas elas nascem na região do polo sul e sobem invariavelmente para norte varrendo a nossa costa SE , L e NE. Os ventos por ela provocados facilitam os barcos que vão do sul para norte, que não era o nosso caso.
Voltando mais ainda, no clube: nos nossos encontros casuais e etílicos, quase sempre nos acompanhavam dois rapazes simpáticos, saudáveis e inteligentes. Um nos frequentava mais, o outro quase zero. Mil ligeiros “porrinhos”. No decorrer dos bate-papos vimos que ambos eram filhos de famílias baianas tradicionais e abastadas. Alardearam, pela mídia Baiana que repetiriam o feito mais falado da época - a travessia pelo fluminense Amyr Klink no Oceano Atlântico, que partiu da costa oeste africana e chegou triunfalmente em Salvador num barquinho à remo. Por ser inteligente, ter grande vivência no mar deve ter estudado à fundo os ventos e as correntes marítimas da região, suas direções, constâncias, velocidades, temperaturas etc. Amyr, sabendo da intenção dos dois jovens baianos neófitos, aconselhou- os a esperar o próximo ano, pois já tinham perdido o momento certo, o tal do “Time”. Amyr provou que partir depois seria temerário, um suicídio. Agora os Baianos não usariam um barco comum, mas um catamarã (barco com dois cascos, chamados de ¨bananas”) com uns cinco metros de comprimento (17 pés) (se não me engano). Para se ter êxito em travessias de tal vulto, é necessário que sejam observadas tanto as normas técnicas como os e estudos dos elementos (época, ventos e correntes), é óbvio.
Mesmo
com conhecimento dos sábios conselhos partiram assim mesmo. Depois, sem
notícias a imprensa nos deu como naufragados ou mortos. Aí, com sorte, parte da
esquadra brasileira (???) foi fazer “manobras” (Onde???) lá na África. Ainda,
com muito mais sorte, o catamarã foi encontrado. Um estava vivo e o outro morto
e tristemente amarrado em um
dos cascos. Não sei qual era o Rafael. O que morreu era aquele que bebia com a
gente, de maneira até meio exagerada. Comportamento esquisito, pois estava em
vésperas de fazer uma parada olímpica - da travessia que exige tremenda saúde mental
e física.
Convém
lembrar que os fatos aqui comentados ocorreram a mais de 40 anos, e eu tenho
somente 94. A minha cabeça está ótima, mas com alguns (senões) pontos obscuros. Para mim, que me acho mais do
mar do que todos que conheço, desculpem a modéstia, sinto tudo com mais força e
tristeza. Estou me referindo exclusivamente às mortes ocorridas.
Voltando
ao assunto principal - o transporte de barco.
Para
ir no rumo desejado era preciso forçar um pouco a mão no leme. Sua cana visivelmente flexionava um pouquinho. Poderia a flexão aumentar no
longo correr da viagem? Quebraria? Aumentaria? E estávamos no comecinho da
viagem. Tal má impressão nos acompanharia a viagem toda, até o seu finzinho.
Passamos pela enseada de Camamú (BA). Chegando perto de Ilheus, o vento do Norte para, a nós favorável, agora vinha do Sul, contra nossa embarcação. Não tendo a mínima possibilidade de enfrentar e prosseguir, voltamos. Dias depois, no clube, chegamos de volta com o “rabo entre as pernas”. Que vergonha! Tomamos ônibus para Rio na Itapemirim. Nossos “rabo” deveriam estar irreconhecíveis .
No
Rio, esperamos o verão. Mais uns dois meses voltaríamos para Salvador.
E
assim foi. De volta àquela cidade, reassumimos as nossas posições no clube. Mais
dias de espera insuportáveis. Mais um “chopinho”. Os ventos e o mar continuavam
contrários. Mais espera. Até que um dia, o tempo sorriu para nós. Naquele mesmo
dia, por azar chegaria ao clube o famoso cantor Calby Peixoto. Deveria
acontecer um festão. Vários ricos preparativos foram feitos. Porém, de
madrugada, caiu um violento temporal. Foi tão forte que fez com que o mar
subisse tanto que causou destruição e danos nas coisas da festa. Cômodos foram
invadidos pelas águas. Foi triste para eles, mas para nós foi engraçado. Não
sei por que.
Se
tivéssemos saído naquele dia, estaríamos bem “FU”. No outro dia, o tempo nos
ficou mais favorecido. “Decolamos” com muita vontade para continuar logo o
nosso projeto.
Os nossos
trabalhos estavam bem divididos: eu na navegação, Guga na regulagem das velas e
na cozinha e Maninho no mais aporrinhante – no leme e na “limpação” de peixes .
Toda
manhã deveriam ser recolhidos os inúmeros peixinhos voadores que a noite voando
como loucos caiam em fuga no seco convés do nosso barco, e que cansados
morriam. São excelentes iscas cravadas nos anzóis do currico (um simples modo
de pescar. Consiste em uma linha de pesca com anzol e isca na ponta. A linha fica
amarrada na popa do barco). Com o barco “andando” o peixinho morto se rebola
parecendo estar vivo. Aí vem um guloso e os abocanha, ficando preso no anzol.
Dali direto ao Maninho, direto para limpá-los e panelas. A armadilha fica
direto armada, dia e noite, 24 horas, porém precisa ser vigiada, o tempo todo.
Que saco!
O mar
sempre forte e rebojado. A viagem prosseguia sem problemas, só nos acompanhava
o temor da cana do leme. Já pensaram ficar sem leme naquele marzão? Não gosto
nem de pensar.
Passamos
de novo por Camamú (BA). Depois chegamos em Ilheus, onde atracamos num molhe de
pedras de uma rua artificial ligando a uma ilha. Nela, bem ao nosso lado, havia
um monstruoso galpão que armazenava milhares e milhares de sacas contendo
castanha de cacau. Exalava fortíssimo cheiro de cacau dia e noite. Cheiro de
natureza que nos enebriava. Parecia que estávamos no céu. Tudo cheirava a chocolate.
Mesmo
sem o inflável, só com os pés de pato, fomos em terra por inúmeras vezes para
fazer as necessárias compras: pão, leite, biscoitos, café, água, diesel etc. Víveres em geral. Para tanto usávamos caixas de isopor. Tudo vinha aos
pouquinhos. Mas o
principal: a previsão do tempo, indispensável para qualquer navegada mais
longa. Ainda não existia G.P.S. ou celulares, somente “orelhão” em
terra. Que precariedade!
Como
já disse, a frente vinha subindo para Norte.
E vinha com forte ventos de Sul. Teríamos,
portanto, que nos abrigar em algum lugar antes de encontra-la. Nunquinha ser
atropelados. Nosso barco não foi feito para grandes embates. O que certamente
aconteceria em breve. Além disso, os equipamentos visivelmente velhos e
abandonados, não nos davam nenhuma confiabilidade. Só nos causavam preocupação.
Como
tenho algum conhecimento da região, conclui que teríamos que nos abrigar no
Espírito Santo. Os abrigos tem que ser de fácil visualização, de dia ou de
noite. No caso, certamente seria o porto de Barra do Riacho (Espírito Santo).
Os bons abrigos são de difícil localização, principalmente naquele tipo de costa, baixa e com águas com grande suspensão, graças ao numero de rios que desaguam no mar, são bilhões e bilhões de detritos, a transparência às vezes é quase zero. Mesmo assim, estupidamente partimos, sabendo que teríamos que nos abrigar no Espírito Santo, logo logo. Hoje eu vejo que foi um grave erro partir. Deveríamos esperar em Iheus a frente subir e passar. E depois, quando voltariam os ventos favoráveis de Norte? Semanas?
O
nosso barco não orça (orçar é navegar à vela contra o vento). Para tanto,
teria que ter características apropriadas . Não é o caso. Não ganharíamos um milímetro sequer contra o vento.
Barra
do Riacho é um portinho perfeito. É fácil a sua visualização de dia ou de
noite. Tem grandes telhados facilmente vistos de longe e farta iluminação
noturna .
Uma
vez no meio do caminho, não há mais volta e naquele mar sem fim.
Caso a
Frente nos pegasse, seríamos jogados “ao leo” no meio do oceano Atlântico, sem
nenhuma noção de onde estaríamos. Teríamos que entrar em “Capa” (Explicando por ordem : primeiro
arriar as velas , depois desligar o motor , nos trancar dentro do barco ,
acocorados e inertes , até a frente passar).
Quanto tempo? Possivelmente bem mais de uma semana . Que dúvida cruel.
Que agonia seria! Sem ver terra e como desembarcar em mar aberto (Desembarcar
no caso é descer em terra, saindo do mar)? Onde? Como? E a perigosa
arrebentação das ondas?!
Para piorar, os nossos alimentos deveriam acabar. Não tínhamos calculado para tanto tempo. Até quando durariam? Outra dúvida também bem cruel. Que sensação de pré-tragédia! Não era um sonho, era pura realidade e bem provável. Isso tudo iria acontecer. Jamais senti tantos sentimentos nefastos. Não queria apavorar os meus companheiros. Não resolveria nada. Guardei tudo só para min, de nada adiantaria transmitir a situação para os meus dois companheiros.
Como tudo não bastasse, a flexão da cana do leme continuava a nos aporrinhar e, pior, naquele marzão! Em último caso, para matar a fome, o peixe. Para saciar a sede: chupar as suas carnes. (técnica de sobrevivência). Mas havia um porém: teríamos que pescar. Sem equipamento próprio e sem pratica e teríamos que ter muita sorte. Que situação!
Já com
tanto tempo passado (não me lembro bem das coisa) já teríamos passado por Ilheus, Canavieira, Porto Seguro, Caravelas, Nova Viçosa, Cumuruxatiba e o
perigoso arquipélago o de Abrolhos (BA), zona repleta de recifes meio
submersos. Com medo e cuidado passamos por ele de tardinha sobe forte neblina,
mesmo assim avistamos o farol de primeira classe da ilha de Santa Barbara .
Como navegamos bem abertos, só vimos mar. E que mar! Sempre com fortes ventos e mar arrepiado. Tínhamos que estar sempre bem atentos o tempo todo. Dormíamos meio acordados prontos para qualquer emergência, como algo que estaria se quebrando, cedendo, gripando ou mesmo se desmanchando. Com aquele barco, naquelas condições, éramos obrigados a navegar só com ventos favoráveis ou melhor, do quadrante Norte.
À noite, só víamos o clarão de luz das cidades e que se destacavam na pretíssima escuridão. Insistindo: se a frente nos pegasse, seríamos empurrados de qualquer maneira, “aos trancos e barrancos”, como se dizia antigamente. Perdidos e pior, completamente ignorados. Lembrando que naquela tempo não existia ainda GPS ou celulares. Eu não sabia ainda fazer navegação astronômica. Além disso, não trouxe o material necessário (sextante, cronômetro, tábua astronômicas, etc). E para quê também?
Navegar
aberto é navegar longe de terra .
Para compensar, eu pensava: "Calma! Calma! Possuo alguma experiência em navegação em terra ou mar. Daria para nos safar?". Os abrigos possíveis da nossa costa leste e nordeste para mim são quase todos difíceis de encontrar. Muitos tem suas entradas mal balizadas com ponta de coral meio submersas, varas velhas, banco de areia, etc... além disso, a nossa costa é extremante baixa, inexistindo uma única montanha para ajudar qualquer avaliação. A última ficava no Sul da Bahia – o Monte Pascoal avistado pelo históricos portugueses de Pedro Alvares Cabral no ano de 1500.
Navegávamos
dia e noite, direto. Cansaço geral.
Um
dia, para aumentar a nossa ansiedade, a surrada vela grande rasgou, fazendo com
que reduzisse a nossa milimétrica velocidade. E ainda com o pouco vento e
aquela pequena hélice, fazíamos somente um nó ou pouco mais. Além disso, o
tecido das velas deveria estar podre ou quase, o que nos dava mais preocupação.
Mais uma!
Imediatamente
fui ao velho saco de velas, guardado no bico de proa, e cortei dois pedaços de
40 x 40 cm. Com eles costurei bem em cima do rasgo, fazendo um sanduíche. Não
costurei, apenas alinhavei bem. Para fazer isso usei material de costura contido
num saquinho que trouxe do meu barco lá do Rio. Sempre que viajo levo ele
comigo. Enquanto o Maninho pilotava, assustadíssimo, para não dizer outra
coisa, eu costurava. O Guga, enjoadíssimo, ficava encarregado de enfiar a linha
no buraco da agulha, o que fez várias vezes com muito custo. A vista dele era
bem melhor que a minha. O normal enjoo dele foi provocado pelo clima de
angustia reinante.
Enfim,
depois de dias navegando (não me lembro de quantos), chegamos numa ilhota
pedregosa e baixa onde havia um farol de primeira classe. Era o farol da boca
do Rio Doce, já no Espírito Santo. Nos dias anteriores navegamos paralelo e
perto da costa. Milhares de coqueiros e praia infinita. O abriga nada . Que nervosismo! Barra do Riacho, a nossa salvação, estava
no máximo a dois dias de viajem, acreditava EU. E eu estava certo.
Cansadíssimos,
sonolentos estropiados chegando perto da
ilhota, gritei para o Maninho: “Joga o
ferro”. O Maninho obedecendo jogou e respondeu: “Joguei”. Aí eu perguntei: “o
ferro segurou?” ele respondeu que sim. Naquele momento todos nós caímos duros,
mortos e totalmente “nocauteados”. Nos transformamos em pedra .
No
outro dia, quando acordamos já com o sol meio alto, para o nosso desencanto e
tristeza, não vimos mais terra, só mar. Estávamos no meio daquele marzão
praticamente parados com a nossa âncora pendurada sem ação. CADÊ O BRASIL?, gritei.
Que sensação!
Que agonia! Nossas cabeças foram a mil. Para nos assustar ainda mais víamos que
o vento norte vinha brochando, brochando e brochando. Sinal indiscutível que ia
virar para sul a qualquer momento. Era a frente fria que estava chegando e com
direito a fortes ventos. Nos apanharia em breve. Como já vimos, se ela nos
apanhasse seríamos jogados para norte. Para onde? Talvez rumando de volta para Ilheus. Hoje só em pensar nisso tenho “fissura”.
Como os nossos víveres já estavam no fim o que aconteceria? Os fantasmas da fome e da cede já não eram tão coisas do “além”. Era pura realidade. Que vontade de “acordar” daquele sonho! Depois, procurar terra seria só de dia. Naquela época nossa costa era bem desabitada, bem diferente de hoje, com milhões de luzes. Qualquer iluminação noturna era raríssima, o que prejudicava quem navegasse procurando terra. No mesmo instante que me lamentei, com pressa peguei a carta náutica local e calculei e apontei: a correnteza do Rio Doce é fraca e nos empurrou nesta direção. O vento nordeste e a correnteza marítima também são fracos. Continuando apontando com um dedo na carta, depois conclui: devemos estar aqui. E desenhei uma rodinha, de onde desenhei uma linha direta para o porto da Barra do Riacho. A linha deu tantos grau. Concluindo finalmente disse “esse é o nosso rumo”. Fomos então naqueles graus, mas com uma lentidão de matar. O vento quase zerando. E com a nossa de merda. Ainda não sabia se chegaríamos a tempo. Eu já estava cansado de tantos “chegaríamos, gostaríamos, teríamos e possivelmente”. Essas dúvidas acabaria nos matando .
Estávamos no fim, mas faltava ainda algumas poucas milhas. Poderia ser o nosso ultimo dia e nos derrubar, as horas da tarde estavam correndo. Daqui a pouco seria noite. Estávamos por poucas horas ou mesmo minutos. Quem sabe? Se a frente nos pegasse, seríamos obrigados a trilhar o caminho para norte. Com posição desconhecida, completamente “sumidos” e por isso sem possibilidade de socorro de terra. Ninguém sabia onde estávamos no grandíssimo vazio da nossa costa . Nem mais ou menos.
O
caminho de volta seria terrível! Com a frente o mar deveria crescer,
enraivecer, provocado pelos fortes ventos da frente. Sem comando, na
“defensiva” - velas e motores zerados por longo tempo. Que situação! Realidade
pura, não era sonho. Teríamos mesmo que nos trancar no barco até a tempestade
lá fora passar. Toda frente fria vem com ventos passageiros mas fortes. Por quanto
tempo? O dia iria acabar logo e continuávamos devagar demais. O vento
fresco começou a vir de Sul indicando o começo da merda !!!
Com este barco não transpomos um “metrinho” para frente. Não poderíamos perder o “time”, “por uma cabeça”, como no tango famoso de mesmo nome. De repente, lá pelas 3 ou 4 horas da tarde, com o vento mais brocha, me pareceu ter visto um lampejo piscar, uma centelha no horizonte bem na proa. Será mesmo? Não acredito! Felizmente era mesmo o reflexo da luz do sol refletindo num telhado de zinco ou alumínio de um galpão. No Porto há um custoso enrocamento (maciço composto por blocos de rocha compactado) de grandes pedras em forma de “L”. Protegendo um piscinão para a colher navios e barcos de pequeno porte. Tudo foi construído pela Aracruz Celulose, só para exportar a sua produção. Que potência!
Um
alívio com alegria indescritível tomou conta do barco. Mas faltava ainda mais
um pouquinho. Tal pouquinho que poderia nos botar no inferno. O mar ficaria
raivoso como já disse. Estávamos por um fiozinho mesmo, muito pouco, por
algumas poucas horas ou mesmo minutos, como indicava o ventinho fraco de Sul,
prova indiscutível de virada de tempo bem próximo. Lá o horizonte, não muito
longe, parecia caminhar pretíssimo para nós. Cruzes!!! Tempestade à vista.
Tínhamos que entrar logo no porto. Não poderíamos lutar nem um minuto contra
aquelas intempéries contrarias. Nem um pouquinho, de ganhar um metro sequer. A
nossa velocidade continuava milimétrica, como já disse. Não podíamos fazer mais
nada. Que torcida! Que angustia! Iria escurecer daqui a pouco. Com azar teremos
uma noite longa penosa e incômoda (muitas outras viriam).
Jogados ao esmo, paralisados, impotentes e sem comando. Novamente a noite preta com a escuridão. O mar cresceria, ficaria raivoso com bicudas ondas quebrando. O tal clima enjoos aconteceriam. Não sabíamos as nossas coordenadas geográficas. Ninguém poderia adivinhar. Perdidos e ignorados. Terrível situação. O socorro praticamente seria impossível, dada a pobreza dos salvadores. Sem dados confiáveis. As nossas famílias, diante da falta de notícias sofreriam muito e por longo tempo. Sentimento de angústia e culpa por ter trazido dois amigos para tal inferno.
Depois de tudo, aparentemente perdido, eis que
surge um final feliz. Até que enfim cruzamos a barra do tão sonhado abrigo. Tudo
de ruim ficara lá fora! Bem longe! Para traz – a incerteza, angustia,
sentimento de culpa. Tudo isso sumiu. Que leveza sentimos!
Sei
que estou repetindo muitas coisas. Se repetindo e intercalando, mas há um
turbilhão de ideias em minha cabeça, “rebojando”. Meu cérebro tem somente 94
anos, daí as minhas fixações repetidas .
Fundeamos
num cantinho vago, sem barco algum por perto. Havia algumas pequenas traineiras
não tão próximas. Todas elas tripuladas por marinheiros – pescadores meios
esfarrapados, visivelmente de baixo nível aquisitivo, de trabalho duro e
honesto. Com técnica, experiência e inteligência se recolheram a tempo ao
abrigo.
Às 8 ou 9 da noite, a tal falada frente apareceu. Lá fora forte ventos fizeram o mar crescer e virar. Que porranca! (jargão náutico que significa vento muito forte, ventania, acompanhado de mar mexido). O mar parecia emputecido. Escapamos por pouco! E se atrasássemos um pouquinho mais? Mesmo por minutos? Aí, para nossa segurança deveríamos voltar para o norte sem enfrentar o mar. Teríamos que correr com o tempo, no caso para o norte, navegar no sentido das intempéries, bem ao largo. E não sei pra onde! Sem enfrentar nadinha. Teríamos que procurar terra? De dia é fácil, mesmo tateando. De noite, nem pensar. Como já disse a nossa costa ao norte do Espírito Santo é baixa desprovida de picos de montanhas para melhor orientar o navegante e ainda suas águas rente a costa frequentemente com pouca visibilidade.
Foram alguns dias e noites de franca alegria inocente. Porém, isso só duraria enquanto a maresia permanecesse, depois se voltaria a realidade – trabalho duro da pesca. E nós as boas vidas – “dolce vita” velejando no mar por puro prazer. Não se pode querer mais nada. Esta viagem, que se tornou perigosa e com risco de vida, foi pra min um ponto fora da curva, porque depois que eu me dediquei ao mar, despertei. Passei a analisar e ver riscos possíveis em tudo que passei a fazer.
Um
dia, eu meio “porrado”, pulando de pedra em pedra no pedral do enrocamento do
porto cai e quebrei uns dentes da frente. Fiquei uma gracinha! Mas para quem,
pouco atrás estava para perder o corpo inteiro, uns dentinhos não era nada.
Com o fim da maresia, sem mais nada a fazer, a comer e a beber, levantamos o ferro (nome marítimo que se dá às âncoras), içamos as velas e fomos embora para Vitória. Chegamos ao lado do cais de Vitória de noite e sob forte chuvarada .
Em
outra viagem anterior que fiz, anotei na carta náutica específica de Vitória o
seguinte: “para ir para o Iate Clube, guinar a boreste no rumo tal por tantas
milhas”. Simples. Guinar quer dizer dobrar, fazer uma curva, e Boreste é o lado
direito do barco com a proa virada para
o norte . Chegamos na costa em uma enseada desconhecida. Mas sabia que o iate
esta ali do lado.
Gritei
: “Maninho joga o ferro”, daí dormimos como pedra.
No outro
dia acordamos. Em poucos minutos de viagem aportamos no cais do Iate Clube do Espírito Santo. Banhos
quentes e maravilhosos! Quanto prazer! Depois corri ao telefone para dar
notícias as nossas famílias que já estavam em polvorosa.
Das
várias vezes que estive no Iate Clube nunca me cobraram nada. Todos sempre
simpáticos. Bem tratado. Um exemplo para outros Iates Clubes quando receberem
navegadores vindos do mar após longas e cansativas pernadas (termo marítimo que
se dá a um trecho navegado de ponto a ponto), estropiados e cansados.
Aproveitei
e telefonei também para os dois donos do barco, pedindo um pequeno acréscimo ao
meu pagamento, tendo em vista o notório perigoso e exaustivo trabalho extra que
tivemos. Expliquei os detalhes e aleguei até perigo de vida. Não foi exagero. E
os furos do inflável? Tudo na nossa
contratação nos fora escondido e nada funcionava. Não é que os miseráveis
negaram. Não discuti. Com raiva desliguei o telefone e jurei não mais levar o
barco para a Marina da Glória como contratado. Deixaria ele no Arraial do Cabo-RJ,
onde uma filha minha tem uma Pousada – A Pousada do Suia ( https://pousadadosuia.com.br/ ).
Como já relatei no início deste trabalho, Suia é um nome de Índios “Beiços de Pau”, “primos dos Caiapós” que habitam o Rio Xingú. Em 1959, ainda com eles arredios fiz o segundo contato do homem branco , sozinho. Parece até Mentira de caçador. Mentira de caçador é o “caral...” É verdade. Ainda hoje lá nas suas aldeias, há índios bem vivos e velhos que são minhas testemunhas oculares, portanto de crédito indiscutível.
Em
homenagem a eles, dei também o mesmo nome ao meu Veleiro, construído em 1962/3,
ampliado, conservado e tinindo. Com ele posso ir agora com segurança a qualquer
lugar. E todo construído em peroba do campo do Rio Doce, rainha das madeiras de
Lei.
Mais uma vez partimos, agora para Arraial do cabo sem escalas. Antes encontrei “boiando” no Clube o Jorge Veleiro, amiguinho da Marina da Glória, que foi incorporado à tripulação. Já é falecido.
Seria
nossa última pernada dessa trágica viagem .
Na
viagem, ao largo, apareceu um passarinho pequenininho e feinho. Pousava no
guardo mancebo (cerca metálica que os veleiros tem em toda a sua borda. Serve
de segurança para os tripulantes) da popa. O passarinho foi pousando, chegando
cada vez mais perto, sem demonstrar medo, ficava pertinho de nós no cockpit
(lugar protegido, fora do barco e geralmente na parte de trás, onde a
tripulação se socializa e pilota o
barco). Mas sempre evitando o vento. Que folgado! Não aceitava nenhum toque. Volta
e meia ele dava voos para fora do barco. Parecia bicar algo invisível para nós.
Caia na água , descansava um pouco e voltava para nós. Um dia voou, voou, bicou,
boiou e sumiu de vez. Ainda devo ter foto dele. Certa feita fui descansar um
pouco no bico de proa. Acordo e vejo o folgado pousado numa cordinha de secar
roupa a dois palmos do meu rosto. Que incrível a sua confiança. Acho que deve
haver também maluquice nos animais.
Pouco
antes do Arraial o tempo virou e choveu . Ventinho contra.
Com
preguiça resolvi ficar em um pequeníssimo arquipélago das Ilhas de Santana em
frente à cidade de Macaé-RJ. Bem lá fora. São três ou quatro ilhotas
pedregosas. Conhecendo o lugar, escolhi um lugarzinho meio protegido. Foi um
dia ou dois.
Partimos
novamente. Agora não tinha perdão, era mesmo a última pernada. Bem curta. Por
coincidência chegamos ao Arraial de dia, juntamente com o garboso veleiro da
Escola Naval Argentina.
Mais uma vez
repito, tudo aqui relatado ocorreu a mais de quarenta anos e meu cérebro só tem
noventa e quatro anos. Isso explica a confusão a possível malversação das palavras
.
Por sorte, em 17/10/2022
encontramos maninho que nos esclareceu muitas coisas :
- não fundeamos ;
- atracamos na borda da
Traineira Sol de Verão do nosso amigo pescador ainda vivo Maico;
- fomos abordados por
um barco de fiscalização da Marinha, comandado por um Sargento;
- queriam rebocar o
veleiro para Cabo Frio, me levando junto e preso;
- Discuti, gesticulei,
gritei e disse que não iria de jeito algum.
Além disso, segundo a
minha clara memória tive um amalucado diálogo com o sargento.
Perguntei: “Sargento,
o senhor sabe o que é depauperado?”. Não me lembro o que ele respondeu, mas
continuei: “Pois é, Sargento, estou Depauperadíssimo”. Bati o pé e disse com
veemência: “Não vou”. Continuei “Não
quero parecer insolente, beijo-lhe as mãos, beijo-lhe os pés, mas não vou”.
Continuei: “Sargento, o Senhor sabe o que é depauperado?”. Depois larguei tudo
pra lá e sumi na praia indo para minha pousada.
Não quis saber de mais nada .
Acredito que o pessoal
da marinha, com razão tenha pensado que fosse um maluco ou coisa parecida.
Finalmente acabei mandando eles chamarem
Ô DARCI, entenderam? (quer dizer, "foda-se").
Ao Maninho sugeri que
levasse o que quisesse do barco, como forma de pagamento do seu trabalho extra.
E fim de papo.
A ARTE DE PILOTAR
O pilotar era o nosso trabalho mais cansativo. O esforço com o braço na roda de leme, a constante observação do vento e da ondulação do mar e o principal, manter a agulha da bússola bem em cima do SUL verdadeiro. Isso por dias, horas e minutos sem ver a terra ou outra qualquer referência, salvo ao longe um ou outro navio cargueiro.
Dia e noite a navegação tomava todo o nosso tempo, de dia o sol nos guiava e a noite as estrelas do entorno da constelação do Cruzeiro do Sul. O olhar do piloto aos astros é na realidade o rumo a seguir. Simples.
Agora eu vou tentar dar ao leitor a visão do nosso piloto saindo de Salvador-BA indo para o Rio de Janeiro-RJ.
As estrelas por nós observadas, por sua vez, obedecendo a rotação da terra, se deslocavam, obrigando o piloto a sempre se realinhar com elas.
O casco do nosso barco tem se comportado muito bem até agora. O que nos tem dado um certo conforto. Também em nenhum momento navegamos contra os elementos (vento e mar picado). Relembrando: a flexão da cana do leme que continua a nos preocupar. Como se isso não bastasse, a fragilidade de nossas velas! Imaginem um rasgão maior. O que isso representaria em termos de atraso na nossa velocidade. A frente fria que estava subindo sem parar... a que velocidade? A probabilidade de um encontro era grande, Incertezas!
Insistindo, se a frente fria nos pegasse, seríamos empurrados de qualquer maneira "aos trancos e barrancos", como se dizia antigamente. Perdidos e pior, completamente ignorados.
Eu tenho a necessidade de acrescentar aqui algumas ideias e detalhes da viagem. Gostaria que o leitor leigo em matéria de náutica entendesse um pouquinho das coisas. Acabei fazendo uma mistura de modo não cronológica. Também, são noventa e quatro anos.