segunda-feira, abril 17, 2006

RIO MEIA PONTE - GOIANIRA-GOIÂNIA-ALOÂNDIA / 2005

por Paulo Castilho
SEGUNDA PARTE


Hugo Leonardo Albuquerque, o parceiro que enfrentou a aventura a partir de Goiânia

Após descansar na segunda-feira, prosseguimos viagem na terça, 18 de abril. Ano passado nosso ponto de partida foi a chácara do amigo Gioveroni. Neste ano decidimos sair um pouco abaixo, na ponte de concreto que liga o Vale das Pombas (Goiânia) ao município de Bela Vista.

O momento da nossa partida. Mais uma vez, o nosso amigo Janderson foi peça fundamental em nossa aventura.

Como a quantidade de chuva desse ano foi maior que a do ano passado, a quantidade de água está maior e a margem está mais baixa, o que facilitou nossa saída deste ponto. Saímos do local às 11:30 horas.

Assim que saímos, poucas curvas abaixo, deparamos com uma margem (direita) com sinais de extração de areia.

Por ser a primeira vez que o Hugo pega em um remo, pensei que a viagem deste ano duraria mais que os três dias que gastamos no ano passado. Em um balanço geral, cheguei à conclusão de que gastamos apenas três horas a mais que a viagem anterior.

Notei que aumentaram os pontos de retirada de areia. Ainda dentro do município de Goiânia, deparamos com dois homens que faziam a retirada manualmente. Nós os cumprimentamos e sem que fizéssemos qualquer pergunta, eles alegaram que estavam fazendo aquilo por não terem outra fonte de renda. O trabalho destes homens, em termos de danos ao meio ambiente, é nulo quando comparados aos trabalhos das dragas.


Segundo ponto de retirada de areia, no município de Aparecida de Goiânia.

Margem habitada. Sempre há problemas de desmatamento nesses locais. Além de desmatar totalmente a margem, os proprietários ainda tem a coragem de passar suas cercas rente às margens. Mesmo com o desbarrancamento e assoreamento visível, não há a menor preocupação de um reflorestamento no espaço exigido por lei. Alegar falta de informação já não é uma boa desculpa.

Nossa primeira parada para um lanche. Chamou-me a atenção este caudaloso riacho que desagua no rio pela margem direita. Há sinais de que ali seja um ponto de pesca.

Nosso primeiro acampamento. Paramos por volta das 17:30 Hrs.

O plano era acampar no mesmo local utilizado por nós no ano passado, ou seja, na ponte que liga os municípios de Hidrolândia ao de Bela Vista de Goiás.

Estava ficando tarde e decidimos que seria melhor parar nesse banco de areia à margem esquerda do rio. No local havia muitas pegadas e fezes de capivaras. Muito aconchegante e seguro este local. Atrás de nós um alto barranco dificultava a entrada de qualquer pessoa. Não encontramos madeira para a fogueira.


Como era a primeira experiência de viagem por rios do Hugo, ele estava muito amedrontado com a possibilidade de encontramos algum animal “selvagem”. Temia que fôssemos atacados por onças ou até mesmo por alguma sucuri. Resolvi tirar proveito e fazer algumas brincadeiras. Em nossa primeira parada para pouso, deparamos com um monte de fezes de capivaras, juntamente com algumas pegadas. Já que ele não conhecia nada daquilo, eu disse que era fezes e pegadas de onça... e das GRANDES! Ele se assustou logo de cara e não queria nem mesmo descer da canoa. Amarrar a canoa em uma árvore próxima ao barranco foi motivo de discussão, pegar lenha para uma fogueira... sem chance. O Hugo não saia de perto de mim e disse que iria montar a sua barraca colada na minha (veja foto acima).

De nada adiantou eu querer desfazer a brincadeira, ele não acreditava que a chance de uma onça aparecer por ali era quase nula e muito menos de que o homem não faz parte da cadeia alimentar desse felino (a não ser em casos extremos de fome, proteção de filhotes ou acuação). Se as presas silvestres se tornam muito raras, as novilhas, as ovelhas e as aves domésticas podem se tornar atraentes. Na maioria das vezes, o predador só está de passagem, em busca de comida. Basta fazer barulho, bater palmas, gritar e abrir passagem que ela vai embora.

Devido ao avanço da agropecuária, ao crescimento urbano ou grandes obras, como rodovias e hidrelétricas, a supressão de florestas nativas deixa as onças demasiadamente vulneráveis. Como predadores, animais de topo de cadeia alimentar, elas precisam de grandes áreas para caçar, viver e procriar. Um indivíduo macho adulto chega a ocupar entre 22 e 150 quilômetros quadrados dependendo da região e da disponibilidade de alimentos. Quanto menos presas disponíveis, mais as onças têm de caminhar. Ao sair em busca de alimento, elas topam com as fronteiras estabelecidas pelo homem. E, inadvertidamente, ‘avançam os sinais vermelhos’.

De acordo com pesquisas feitas pelo Cenap (Centro Nacional de Pesquisa), entre 1993 e 2003, houve 155 ocorrências de onças junto a fazendas e áreas urbanas, só na região Sudeste. Outros 115 casos foram registrados no Sul, no mesmo período. No Centro-Oeste foram 28, no Nordeste 22 e no Pantanal, 20. Longe de refletir a realidade devido à subnotificação, os números servem apenas como parâmetro da disputa pelo espaço.

Carcaça de uma vaca boiando rio abaixo, logo acima da ponte que liga a BR-153 ao município de Piracanjuba. O mal cheiro foi notado por nós alguns metros antes de chegar até ela.

Por volta das 16:30hr começamos a notar que o céu atrás de nós estava escurecendo. Grandes nuvens de chuva se agrupavam e fortes trovões começaram a ser ouvidos. O ideal seria procurar um lugar seguro para acampar, mas ainda era cedo e isto poderia atrasar completamente nossa viagem. Resolvemos arriscar e prosseguir viagem.

Chegamos à ponte de Piracanjuba justamente na hora em que a chuva nos alcançou. Pensei em acampar por ali, mas mudei de idéia quando pensei na segurança do local.

A experiência do ano passado de que dali para baixo os pontos para acampamento são raros, batiam sempre na minha cabeça. Mesmo assim, resolvi prosseguir viagem e diminuir a diferença de horas.


Aqui estamos exatamente debaixo da ponte nova de Piracanjuba, olhando para a antiga ponte que ruiu. Nos escondemos da chuva e aproveitei para dar uma breve cochilada dentro da canoa.

Logo abaixo desta ponte, passamos pela ilhota onde existe uma pequena casinha sobre palafitas.

A vegetação que margeia o rio a partir deste ponto muda completamente. Ciente de que teríamos dificuldades para acampar, resolvi entrar em um pequeno riacho que desembocava na margem direita do rio. Após percorrer uns dez metros por ele, achamos um ponto ideal para acampar. A margem alta e coberta por uma baixa vegetação foi o ideal.

Nossa segunda noite. Após uma tarde sob constante ameaça de chuva, acampamos em um braço de um riacho à margem direita do rio Meia Ponte. O local era seguro, pois estava a mais ou menos um metro da linha d’água.


Aqui neste acampamento, tive novamente a demonstração de outra fobia do Hugo: o medo de ser atacado por uma sucuri. Como tivemos que entrar em um pequeno tributário do rio, de pouca profundidade e cheio de raízes nas margens, ele ficou bastante assustado. Eu disse a ele que a sucuri “arfava” (fazendo um som parecido com um ronco) antes de atacar suas presas. Durante a noite, devido aos meus roncos, o Hugo ficou algumas horas sem dormir sem saber se quem roncava era eu ou a cobra!!!

A sucuri é um réptil ofídio da família dos boídeos. Para identificá-la, basta observar certas características: cor pardo-azeitonada, com uma dupla série de grandes manchas pretas e cabeça revestida de numerosas escamas pequenas. Elas habitam praticamente quase todo o território brasileiro, vivendo sempre à beira de rios e riachos. A Sucuri é a rainha da selva amazônica. No passado, a existência desta extraordinária serpente perdia-se nas brumas da lenda. Os exploradores que a haviam encontrado falavam de um aterrorizante monstro (o coronel Fawcett encontrou uma de 15 metros e Henry Walter Bates ouviu falar de espécies do mesmo tamanho); os índios, por seu turno, acreditam numa serpente mitológica com dezenas de metros de comprimento, chamada Mãe D’Água.

Passando da lenda à realidade, a sucuri continua sendo a maior serpente conhecida: ainda que o espécime conservado num museu de Londres tenha menos de nove metros, há notícias de espécies que, garantidamente atingem os doze metros (enquanto a rival direta da sucuri, a píton malaia ou de Bornéu, não supera os dez).

É possível que no passado tenham existido os espécimes gigantescos de que falam Fawcett e Bates nos seus livros de exploração? Talvez.

Infelizmente, a rainha da floresta corre o risco de extinção, submetida como é a um impiedoso massacre por parte de caçadores índios e colonos brancos.

A sucuri tem um processo digestivo muito difícil e trabalhoso, durante o qual se torna presa fácil dos caçadores. Sua única defesa, nesses casos, se mostra contraproducente: emana um desagradável e intenso odor que ajuda os caçadores a localizar seu esconderijo.

Por outro lado, a sucuri não conhece rival entre os outros animais na captura de suas presas. É quase sempre coroada de sucesso em suas lutas com o jacaré.

Como ele sempre deixava a canoa ir em direção às galhadas nas margens do rio, eu disse a ele que naqueles locais é que as cobras costumavam ficar, enroladas nas árvores. Foi o suficiente para que a canoa sempre navegasse no meio do leito!!! De vez em quando ouvíamos o som de um pica-pau martelando alguma árvore com seu bico. Ao ser perguntado sobre a origem daquele som, eu disse ao Hugo que se tratava de cobras alertando sobre sua presença (a canoa quase voava de tantas remadas!).

A principal ferramenta do pica-pau para sobreviver é o bico extremamente resistente, que é usado para picar a madeira do tronco das árvores à procura de insetos. Dotados de músculos fortes no pescoço, os pica-paus tem até uma proteção no cérebro, para suportarem a trepidação. Sem isso não agüentariam bater com o bico na madeira mais de 100 vezes por minuto, sem ficarem zonzos. Os ossos entre o bico e o crânio não são contínuos e sim ligados por um tecido esponjoso capaz de absorver os impactos e, assim, evitar danos cerebrais.

O maior risco que se corre ao fazer uma aventura como a nossa, é acabar esbarrando em uma cobra. Contei ao Hugo que na sede da Geo Ambiente existe a fotografia de uma cobra, que morreu ao tentar engolir uma presa de grande porte. Começamos a falar do tema.

Quando as pessoas se servem de refeições além de sua capacidade de comer, ou quando engasgam com um bocado maior, dizemos que têm “olhos maiores que a barriga”. Isto também pode acontecer com os animais, incluindo as cobras.

As cobras não tem dentes adequados parra mastigar ou cortar sua refeição em bocados. Portanto, tem que engolir inteira sua presa. Apesar da capacidade de engolir bocados grandes – pois sua pele é elástica e as costelas não estão unidas entre si – há um limite de volume. Se o limite é ultrapassado, está criada a situação de “olhos maiores que a barriga”.

Mortes de cobras por sufocação foram relatadas por biólogos em diversas partes do mundo, incluindo o Brasil (a foto da Geo Ambiente é um bom exemplo).

Ao se deparar com uma cobra no meio do mato, é bom lembrar que a grande maioria delas é inofensiva para nós, e que na maioria das vezes nós é que somos um risco para elas. Todas são mortas indiscriminadamente, sejam inofensivas ou perigosas (caso das poucas espécies peçonhentas da nossa fauna). O risco que atribuímos a estes animais está baseado na nossa ignorância sobre seus hábitos. As cobras tem função importante na natureza, como predadores ou presas de outros animais.

A atual devastação ambiental é a maior ameaça para as cobras. Então, caso você se depare com uma, pense duas vezes antes de matá-la.

Outra draga de areia. Passamos por ela na manhã do terceiro dia. Outra vez tivemos dificuldades em passar pelos cabos que atravessam o rio. Essa estava em pleno funcionamento, um homem a manobrava enquanto outros quatro trabalhavam na margem.

As torres de transmissão de energia são indícios de que o lago está próximo.

A última coisa que eu esperava encontrar a partir deste ponto era uma draga de areia... mas ali estava ela, com seus cabos de um lado ao outro, em plena região do lago.


Chegamos ao ancoradouro do Renor exatamente às 16:15hr.

Ao chegarmos no lago, após exaustivas horas de remo, fomos fazer reconhecimento do local por onde passaríamos o equipamento.

Na margem oposta de onde acampamos, existe uma “rochinha”, bem ao lado da barragem do Rochedo, por onde as pessoas descem embarcações. Foi por ali que decidimos que passaríamos a nossa canoa.

Constatamos que seria possível transportar nosso equipamento através da rochinha. Todo o material teria que ser carregado por cerca de 500 metros. Voltamos para nosso acampamento e, após uma farta refeição (uma das melhores depois de todos esses dias), fomos dormir às 21:10hr.


Na manhã do quarto dia, após sair de minha barraca, enquanto tomava leite com chocolate, sentado no ancoradouro, essa foi a visão que tive do amanhecer. Eram 6:25hr do dia 22 de abril.
Nosso acampamento no ancoradouro do Renor, momentos antes de nossa partida.

Em breve postarei a terceira e ultima parte da nossa aventura.


Brig.Raimundo Jose da Cunha Mattos

ITINERÁRIO DO RIO DE JANEIRO AO PARÁ E MARANHÃO PELAS PROVINCIAS DE MINAS GERAIS E GOIÁS

OBRA DEDICADA AO EXMO. SR. DIOGO ANTONIO FEIJÓ
Regente do Império do Brasil,
PELO BRIGADEIRO
Raimundo José da Cunha Mattos
Oficial de Ordem Imperial do Cruzeiro, Comendador de S. Bento d’Ávila

Rio de Janeiro - Tipografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve - Rua do Ouvidor n° 95 - 1836 (Primeira Impressão)

INTRODUÇÃO

Fazendo-se de dia em dia mais interessantes os conhecimentos geográficos, físicos e políticos do Império do Brasil, aos naturais e aos estrangeiros, em razão do aumento da sua agricultura, acrescentamento da população, desenvolvimento do seu comercio, progressos científicos dos seus habitantes, sobretudo pelo extraordinário empenho que se mostra na carreira das empresas de navegação, aberturas de estradas e canais que facilitem os meios de transporte, e o estabelecimento do Colônias agrícolas e de mineração, lembrei-me de procurar entre os meus manuscritos estatísticos, geográficos e históricos, o Itinerário que escrevi durante as minhas marchas, e no exercício de Governador das Armas da Província de Goiás, por me persuadir que esta obra pode ser de alguma vantagem aqueles que nas sobreditas circunstâncias desejarem consultá-la.

Muito poucos são os Itinerários propriamente ditos, que se acham impressos sobre as terras do Brasil: aqueles de que tenho notícia, anteriores aos anos de 1823 a 1826, em que escrevi os que agora apresento, são os dos Astrônomos, Engenheiros e Naturalistas empregados nas demarcações dos limites do Rio Grande, Mato Grosso e Pará; as relações das visitas do Bispo D. Fr. Caetano Brandão; o Diário da viagem do Ouvidor do Rio Negro, Francisco Xavier de S. Paio; e o Roteiro do Coronel Sebastião Gomes da Silva Berford, desde a Cidade de S. Luiz do Maranhão até o Rio de Janeiro. Os escritos do viajante inglês Mawe, do Príncipe de Neuwied, do Barão de Eschwege, do Tenente Coronel Varnhagem, os do outro inglês Koster e de mais alguns naturais e estrangeiros, apresentam muitas vezes relações itinerárias, isto é, a descrição seguida das marchas que fizeram durante as suas cientificas explorações.

Depois do ano de 1826 apareceram as estimáveis obras dos doutores Spix e Martius, Augusto de S. Hilaire, Major d’Alincourt e mui poucos outros escritos em forma de Itinerários; mas quase todas elas em razão do seu alto preço ou raridade, não andam em mãos daqueles que não possuem os meios de as consultarem.

Também não faltam histórias completas e memórias particulares de várias Províncias do Brasil, que uma ou outra vez apresentam relações diárias dos acontecimentos mais notáveis: isso não basta para eu compreender na classe dos Itinerários a interessantíssima história do Brasil por Southey, nem as de Beauchamp, Deniz, Scheffer, Warden, Hahn, Graham, Freireiss, Acard, Lienaus, Barclay Mountaney e outros sábios estrangeiros, nem as importantes memórias de Monzenhor Pizarro, a Corographia Paraense de Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva, e os Anais do Rio de Janeiro pelo Conselheiro Balthazar da Silva Lisboa, nem a Corographia Brazilica do Padre Ayres do Casal. Se os fins de todos os sobreditos Escritores foram mui bem desempenhados, eu procurei igualmente satisfazer a menos apreciável diligência de que em razão do meu emprego fui obrigado a encarregar-me.

O meu Itinerário não é uma simples carta de nomes, nem uma coleção fastidiosa de algarismos! Sem perder de vista a série sucessiva dos tempos e dos lugares, eu apresento detalhes e informações que interessaram na parte científica e temperam a aridez própria dos simples Roteiros. A maior parte do que escrevo foi por mim visto e examinado: fadigas extraordinárias, perigos iminentes são a moeda que me custou esta minha obra; não afianço a perfeição dela, porque na mesma França e Inglaterra não há perfeição absoluta em matérias geográficas; eu fiz quando pude, e ainda mais faria se tivesse quem me auxiliasse. Trabalhos desta natureza não se fazem a troco de boas e ainda menos de más palavras: honras e dinheiros são os ordinários moveis das empresas gloriosas; e quando o Governo ajudar aqueles que podem ser úteis, quando lhes conferir as recompensas que eles merecem, poucos homens haverão, que pelo título de amor próprio e esperanças de melhor fortuna, recusem embrenhar-se em sertões inóspitos e arrostar a morte em terrenos insalubres, por terem a certeza antecipada de acharem quem os valorize, quem louve as suas dedicações e quem faça caso das suas descobertas.

Tendo exposto aos meus leitores o objeto da Obra que ora submeto à sua censura, julgo conveniente fazer algumas observações muito necessárias àqueles que estudam a Geografia do Império Brasileiro.

As águas correntes são designadas na Província do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás, em parte da de São Paulo e no Cuiabá pelos nomes de rios, ribeirões, córregos, riachos e riachões. Parece que o nome de rios deverá ser privativo às águas navegáveis: não acontece assim; muitas torrentes recebem o nome de rios sendo menos volumosos do que os chamados ribeirões, riachões, riachos ou córregos: eis o motivo de aparecerem em vários mapas as mesmas idênticas águas, ora com nome de rios, ora com o de ribeirões e córregos. Eu não me achei autorizado a alterar a nomenclatura estabelecida: isto pertence ao Governo em resultado do levantamento de cartas hidrográficas, corográficas e topográficas sujeitas a observações astronômicas.

As águas estagnadas com sangradouros temporários ou perpétuos, recebem conforme as suas extensões os nomes de lagos, lagoas, poços e ipoeiras: muitas vezes dá-se o nome de poço àquilo que apenas é uma ipoeira, assim como o nome de lago ao que não passa de ser uma lagoa. A maior parte das águas estagnadas secam de todo pela ação do sol abrasador, principalmente nos terrenos arenosos.

Muitas cordilheiras de montanhas são conhecidas ora pelo nome de serras, ora pelo de morros. Várias gargantas, desfiladeiros, ou quebradas que retalham um sistema de serras ou cordilheiras, dão lugar a denominações arbitrárias. Eu encontrei muitas montanhas designadas como serras diversas, tendo apenas uma légua de extensão: tal é o motivo de aparecer uma vasta nomenclatura de serras que na Província de Goiás podem ser reduzidas a dois ou três sistemas gerais, filhos da Serra do Mar e de ramificações das Andes e Nova Granada.

Em Goiás as Igrejas Paroquiais Matrizes e Filiais Curadas existem no meio de povoações de maior ou menor número de casas e que recebem os nomes de arraiais: não acontece assim em alguns lugares das Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Eu encontrei Igrejas Matrizes e Capelas Curadas que apenas tinham a casa do Vigário ou do Cuna junto às mesmas Igrejas e mais nenhum morador. Várias Capelas e Hermidas ou casas de oração de Goiás e outras Províncias, estão em lugares ermos, ou em alguma fazenda de açúcar ou criação de gados.

As povoações denominadas aldeias são privativamente habitadas por Índios domesticados ou selvagens; em algumas das primeiras residem vários agregados de raça diferente dos possuidores originários.

As propriedades rurais são conhecidas pelos nomes de fazendas, engenhos, sítios e roças. As fazendas são aquelas em que se cria gado vacum, cavalar ou cerdal. Os engenhos são os que tem fabricas de açúcar, em muitos dos quais não existe um só escravo. Roças são as propriedades em que se cultivam unicamente gêneros cereais e farináceos em ponto grande; e os sítios são as propriedades em que se fazem pequenas plantações.

As matérias mais importantes da geografia do interior do Brasil e aquelas em que mais se anda as apalpadelas, são as latitudes e longitudes dos lugares. Eu tenho motivos sobejos para afirmar que nas Minas Gerais e em Goiás fizeram-se mui poucas observações astronômicas e que acerca das longitudes, tudo é obscuridade, pois que o mesmo Barão de Eschwege, na sua obra excelente sobre o Brasil, e na qual apresenta uma larga tabela de latitudes, não se atreveu a marcar as longitudes, prova de conhecer que há incerteza completa a respeito de todas as que aparecem nos escritos dos historiadores. Eu possuo uma larga coleção de longitudes e latitudes dos lugares interiores do Brasil; e tive a desgraça de não encontrar dois pontos em que se conformassem. As mesmas marchas que eu fiz, as distâncias que havia de lugar a lugar, e os rumos a que respectivamente demoravam, mostraram-me os erros dos Astrônomos Jesuítas Diogo Soares e Domingos Chapazzi; ou para melhor dizer, eu fiquei entendendo que estes Jesuítas não fizeram observações astronômicas em Goiás. Que maior prova pode haver sobre a falta de observações ou dos erros delas no caso de se terem feito, do que as diversas alturas assinadas à confluência dos Rios Tocantins e Araguaia e muitos outros lugares? Eu segui as informações do Engenheiro Salvador Franco da Matta, feitas durante a sua jornada por terra para Mato Grosso no ano de 1772, sem contudo afiançar a exatidão do seu mapa, por saber que não tem sido ratificado por observações posteriores e não haver o Barão de Eschwege, ou outro Oficial instruído, tomado a seu cargo a verificação da longitude das Minas Gerais depois que o Sargento mor Engenheiro Pedro Gomes Chaves, no ano de 1714, satisfazendo a Ordem Regia de 5 de Junho de 1711, levantou o primeiro mapa da sobredita Capitania para se proceder à divisão das suas Comarcas. Se algum dia aparecerem as corografias históricas das Províncias de Minas Gerais e Goiás, que eu escrevi com muita extensão e grande cuidado, ver-se há tudo quanto ficou ao meu alcance sobre os rumos das ciências físicas e matemáticas destas duas Províncias, que foram objetos dos meus importantes e mui volumosos trabalhos, dos quais os Itinerários são um pequeno extrato.

Não posso perder a ocasião de dar duas palavras sobre a Corographia Paraense composta pelo Sr. Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva e impressa na Bahia no ano de 1833. Este Geógrafo mostra haver descido o Rio Tocantins e fez a respeito dele observações mui circunstanciadas. Eu desejarei que ele compare as suas com as minhas descrições, começando desde as fontes meridionais do Rio Uruhú, bem certo de que poderá acrescentar alguma coisa em uma nova edição que pretende publicar.

Devo declarar que escrevi esta minha obra com a maior imparcialidade; apontei o bom e o mal; não temo que me desmintam naquilo que eu digo de conhecimento próprio: as pessoas com quem servi e quase todas aquelas de que trato, existem vivas. Não aponto anedotas do interior das famílias, para não ser censurado e havido como ingrato à hospitalidade e aos imensos favores com que sempre me obsequiaram nas Minas Gerais e Goiás, Províncias que eu poderia atravessar e esquadrinhar cientificamente sem fazer cinco réis de despesas, e sem temer o menor risco da parte dos seus moradores honrados.

Os curiosos, comparando os meus mapas e literários com os mapas antigos, acharam diferenças em nomes de alguns lugares: eu dou a razão dessas mudanças. No sertão cada fazendeiro tem um santo, seu advogado ou intercessor; e acontecendo estabelecer um sitio ou fazenda, põe-lhe às vezes o nome desse santo; e isto mesmo também se pratica em algumas ocasiões de compras de antigas propriedades, mudando os novos senhores os nomes com que as fazendas eram conhecidas até esse tempo. Ninguém mais fez uso dessa liberdade do que o sábio Barão de Eschwege e Mr. Marliere. Eles mudaram e deram novos nomes a rios, córregos e ribeirões, principalmente nas proximidades do Rio Doce, talvez por motivos bem fundados. Outros viajantes estrangeiros também o imitaram a este respeito, para fazerem obséquios e perpetuarem a memória dos fazendeiros que os hospedaram nas suas casas: eu apresento um exemplo e poderia oferecer muitos mais. Os Doutores Spix e Martius foram hospedados na Fazenda de S. Roque pelo ajudante Francisco Rodrigues Frota, de que trato no Itinerário N° 11, e em atenção a esse Oficial, lançaram no seu mapa a dita Fazenda S. Roque com o nome de Frota. Esta liberdade, pior do que a poética, é muito prejudicial na geografia e quando pouco mal faça, obriga ao menos a escrever nomes diferentes de um idêntico e único lugar, o que talvez induza a pensar que são lugares diversos. Ainda há outro defeito muito importante, e vem a ser a falta de cautela com que os viajantes estrangeiros escrevem os nomes dos lugares e arvoram em vilas e povoações aquilo que apenas é uma fazenda. O viajante inglês Mawe foi infeliz a esse respeito, e por isso incorreu na justa censura do Padre Cazal. Dar o nome de town ou bourg a uma fazenda em que há muitas senzalas de escravos, terá como resultado o não se saber daqui a alguns anos se com efeito os lugares notados como town ou bourg, eram arraiais ou vilas, ou se simplesmente foram fazendas de gados ou de engenhos de açúcar, e não pareça isso uma quimera, pois o que no dia de hoje ignora-se em Goiás se os sítios denominados Calhamares, Corriola e outros, eram fazendas ou se foram arraiais regulares e como foram destruídos ou abandonados. Nos antigos mapas figuram como arraiais muitos sítios hoje desertos, acontecendo isto mesmo a inumeráveis fazendas que, ou foram abandonadas e destruídas, ou receberam novos nomes a arbítrio de possuidores novos. Esta desordem tem de continuar nos sertões ainda por muito tempo em grave prejuízo da geografia, se o Governo não obstar a essa mal entendida liberdade de mudança de nomes, fazendo imprimir mapas gerais. Eu, ao mesmo passo em que censuro o arbítrio com que se tem mudado várias denominações, indico com a de Mausoléu o Morro Cabeça de Boi da Serra Geral no Julgado do Porto Real. O morro apresenta a perfeita configuração de um mausoléu, e inculcando-o como tal, procuro que algum sábio viajante o examine mais de perto e faça acerca dele aquelas observações que eu não tive tempo de praticar. O nome de Mamas que dei aos dois belos outeiros da Chapada de Santa Rosa de que tratei no dia 25 de Maio de 1823, não tinham outra denominação e merecem ser indicados como marcas no roteiro da Mina das Plantas incrustadas.

Devo confessar o muito que sou obrigado ao Ilmo. E Rmo. Sr. Cônego Luiz Antonio da Silva e Souza, Provisor e Vigário geral do Bispado de Goiás. Este sábio eclesiástico é o pai da coreografia da Província e tudo quanto se tem escrito no Brasil acerca dela desde o ano de 1812, está baseado nas suas excelentes Memórias Goianas, que debaixo do nome de Custódio Pereira da Veiga correm impressas na Coleção do Patriota do Rio de Janeiro. Quando eu comecei a juntar os materiais para a coreografia histórica da Província de Goiás, ignorava a existência desta Memória, e por isso depois de concluída a minha obra, pedi ao sábio Memoralista e à Câmara da Cidade de Goiás, uma cópia daquele precioso manuscrito, para o confrontar com os que eu já tinha arranjado. A Câmara e o ilustre autor da memória obsequiaram-me como eu esperava, honrando-me pelas cartas aqui juntas, muito mais do que eu tinha razão de ambicionar:

CÓPIA - “Ilmo. e Exm. Sr. Brigadeiro Raimundo José da Cunha Mattos,

Tendo escrito há poucos dias a V. Ex., tive hoje a satisfação de receber a sua honrosa carta, verdadeira produção de um ânimo generoso, que liberaliza o que tem sem atender ao pouco ou nada que mereço.

Tinha em lembrança, como prometi, pôr me na presença de V. Ex. com a vênia necessária, a Memória que escrevi obrigado, e de que logo me arrependi desconfiado de mim mesmo, mas quando tive tempo livre para isto, tive a certeza de ser enviada pela Câmara a V. Ex.; é este o motivo de não cumprir a promessa que tinha feito como a escrevi ao Rd. Padre Silva. Terei muita satisfação de ver suprido o que me faltou, e que tenha a Nação e o Império a respeito de Goiás as noções que lhe faltavam. Desejo a V. Ex. saúde e felicidade. Deus guarde a V. Ex. muitos anos. - Goiás, 19 de Dezembro de 1824. - Ilmo. e Exm. Sr. Brigadeiro Governador das Armas. - De V. Ex. muito venerador e criado – Luiz Antonio da Silva e Souza.”

COPIA DO OFICIO DA CÂMARA – “Ilmo. e Exmo. Sr. – Temos a satisfação de enviar a V. Ex. uma cópia da Memória que esta Câmara possui em seu arquivo assar c vasta e para o fim que V. Ex. nos inculca em seu Oficio de 10 de Novembro pretérito, útil e própria para dela tirar matérias para enriquecer a Coreografia Goiana que V. Ex. tem entre mãos, da qual encarecidamente rogamos a V. Ex. queira brindar a esta Câmara com uma cópia, afim dela ornar-se com este precioso monumento, filho das luzes e desvelos com que V. Ex. se emprega no bem ser deste recente Império, que lhe foi partilhado pelo gigante deste século, o nosso amado Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo. – Goiás, em Câmara de 13 de Dezembro de 1824 – Ilmo. e Exmo. Sr. Raimundo José da Cunha Mattos, Governador das Armas desta Província. – Jacob Fortes de Sá. – Pedro Gomes Machado. – Domingos José Dantas.

Se a Câmara, o sábio autor das Memórias Goianas e eu mesmo, ficamos iludidos na esperança de ver publicada a minha Corographia Histórica, por falta de fundos pecuniários para a impressão dessa interessante obra, assim como da Coreografia Histórica da Província de Minas Gerais, agora no meu Itinerário verão uma pequena parte daquilo que está pronto e eu desejava apresentar para não se perderem os escritos importantíssimos resultados de muitos anos de trabalhos.

Devo pedir aos Srs. que se acham à testa da Administração Pública de Goiás, que continuem e aperfeiçoem os meus manuscritos: eu emendei os antigos mapas em mais de três mil pontos diferentes, por onde transitei, e daqueles de que recebi informações em que podia de certo modo confiar: ninguém pense que os meus mapas são absolutamente exatos. Eu os declaro nos Itinerários: se eu fiz mais de três mil emendas nos antigos mapas manuscritos, agora pelos Itinerários e mapas impressos, proporciono os meios convenientes de se proceder a novos exames e às correções inumeráveis que será necessário praticar. Eu apenas transitei pelas estradas gerais de Goiás; não fiz explorações pelas terras desertas ainda nas povoadas que ficavam fora da minha linha de marcha. Só afianço aquilo que eu mesmo observei e deixo a outros melhores do que eu, o mais que entenderem ainda faltar. A Província de Goiás não podia ser explorada em dois anos por um homem quase desacompanhado, e que, além dos entretenimentos geográficos, tinha muitas outras cousas em que cuidar.

Como depois do ano de 1826 em que escrevi o último artigo do Itinerário, por haver chegado ao Rio de Janeiro no fim do mês de Abril, ocorreram várias mudanças na Província de Goiás; julgo conveniente fazer um Apêndice onde não só mostro essas novidades acontecidas, mas também algumas correções sobre tópicos em que houveram enganos por eu ter sido mal informado. Esses enganos foram mui poucos, porque sempre procurei escrever com grande cautela e depois de me achar iluminado pelas pessoas que eu supunha estarem melhor ao fato dos acontecimentos relatados.

Nenhum comentário:

Postar um comentário