A CONQUISTA DO CENTRO GEOGRÁFICO DO BRASIL
A
determinação desse centro se fez nos anos 30 pelo geógrafo Fabio Macedo Soares
Guimarães. Anos depois, a pedido da Fundação Brasil Central foi confirmado pelo
IBGE. A curiosidade sobre esse ponto
geográfico do país se justifica. Primeiro, para esclarecer a muita gente que
Brasília não está no centro geográfico do Brasil e sim no centro do altiplano
que divide o país. Havia importância para a ciência e até para a estratégia
militar aeronáutica na localização do centro em relação às distancias das
fronteiras. Talvez outras utilidades surgissem com uma investigação
minuciosa do local. Geografia, astronomia, etc. Rondon tentou a empreitada
em 1906, mas não conseguiu. Teve de retroceder do Rio das Mortes com a
exclamação contristada: “Estes Xavantes são indomáveis”, e preferiu locar com
instrumentos o centro geográfico na América do Sul, que fica situado em Cuiabá. A ideia de implantar o marco no
centro do Brasil partiu do engenheiro José de Paula Retto, Presidente da
Fundação Brasil Central.
EXPEDIÇÃO PARTE À DESCOBERTA
DO CORAÇÃO DO BRASIL
Reportagem de Orlando e Claudio Vilas Boas
A
expedição ao Centro Geográfico, de interesse da Fundação Brasil Central,
coincidiu na época, com as viagens periódicas que há anos vimos fazendo Xingu
abaixo, em trabalhos de atração e visita aos índios Caiabi, Juruna,
Txukarramaes, que são os grupos mais afastados do nosso posto Capitão
Vasconcelos. O Dr. José de Paula Retto,
presidente da Fundação, resolveu atingir e demarcar em terra o centro
geográfico do Brasil. Colheu para isso dados do IBGE e conseguiu um mapa na
PROSPEC, companhia de levantamentos aerofotométricos, bem como uma série de
fotografias de longo trecho do rio Xingu e da zona do centro; de acordo com as
coordenadas conhecidas. Essa inestimável colaboração possibilitou que, fosse,
com rigorosa precisão, realizado o serviço, ou seja a demarcação do centro
geográfico brasileiro. A Prospec que, de acordo com a SPEVEA, está
confeccionando uma carta detalhada da Amazônia, designou um dos seus geólogos
para acompanhar nossa expedição, com a finalidade de colher dados geológicos na
região percorrida, ainda completamente inexplorada sob esse aspecto. O Dr.
Franklin de Andrade Gomes foi o escolhido para esse trabalho, tendo durante 3
longos meses navegado e furado mata nessa região xinguana. O entusiasmo do
geólogo mineiro era contagiante. Não passava ele ao largo de nenhum detalhe das
formações rochosas encontradas ao longo do rio. Em uma delas, uma calota
granítica cobrindo um quartzito comum, coisa imperceptível para o leigo, o
entusiasmo do pesquisador atingiu o máximo de intensidade. Recebemos aí uma
aula completa sobre as origens deste nosso Xingu, em cuja serenidade majestosa
das suas vastas solidões atuais, não podíamos imaginar as contorções
gigantescas, as convulsões ciclópicas de que foi cenário. “O Xingu é muito
novo”, concluiu o cientista, “não deve ter mais que uns 50 milhões de anos!...
Recentíssimo, recentíssimo”...
A EXPEDIÇÃO
Além do Dr. Franklin, outros vieram do Rio para participarem da expedição ao centro geográfico. Foram eles: o jornalista Dilton Torres da Motta, do Correio da Manhã e funcionário do Banco do Brasil, posto pelo Catete à disposição da Fundação; SERGIO BACELAR VAHIA DE ABREU, filho do saudoso Dr. Darcílio Vahia de Abreu, médico incansável dos primeiros tempos da Roncador Xingu; Jorge Vabrera, chileno radicado no Rio; Adrian Cowell, um dos estudantes do grupo Oxford-Crambridge que, no início deste ano, andou correndo a América de jeep. Adrian apaixonara-se pelo sertão e, por isso, resolveu, separando-se dos companheiros, ficar mais tempo no Brasil para acompanhar a expedição ao centro geográfico. Todos os participantes, vindos de fora, prestaram ótimos serviços. A cada um coube uma função da qual deram conta plenamente. O Dr. Franklin, além do seu objetivo principal – pesquisas geológicas – foi incansável nos trabalhos de demarcação do centro geográfico. Era uma paciência a toda prova. Dilton Motta, nosso companheiro de expedições passadas, “pirangueiro” (pescador) de mão cheia, esteve sempre pronto. Afobado algumas vezes, calmo quase sempre, o jornalista não titubeava um segundo em saltar nas águas bravas das corredeiras, ou empreender caminhadas cansativas pelas picadas.
INGLÊS CAÇADOR ESPANTA ONÇA NO BERRO
Adrian com seu “canhão” doméstico, era um matador tremendo de mutuns e jacobins. Quem o visse voltando da mata sobraçando a sua calibre 12 de chumbo grosso, facilmente o tomaria por um barba-rala nativo, pelo jeito e pelo traje que tão rapidamente assimilou. Pisando num sapato cambaio que o levava sempre a andar em zig-zag, calças e camisas em tiras, o jovem súdito da rainha, para ser um caboclo ribeirinho, só faltava que se lhe tirasse a 12 e lhe desse um pica-pau. Educado, calmo, calmíssimo, o inglês só afobou uma vez, quando negaceando um jacobin, deu de cara com uma onça. Fazendo pouco do caçador, apesar do seu 1,90m – a “bicha” caminhou para seu lado desenvolta e franzindo a testa. Adrian, que de onça só conhecia “causos”, levando um susto pelo inesperado do encontro, disparou meio sem pontaria, o seu “canhão” no rumo da fera. Mal atingida, a onça bastante enraivecida, continuou caminhando no rumo do caçador. Arma de um cano só tem o inconveniente de na hora de aperto engasgar o cartucho. Foi o que aconteceu. A única saída era gritar. Adrian, diante disso, não teve dúvidas, soltou um berro que, pelas circunstancias não deve ter sido pequeno, pois a onça torceu o caminho e saiu “embodocada” e roncando noutro rumo. Voltando ao acampamento, ali bem perto em busca de melhor munição e um companheiro, momentos depois lá estava ele de volta com Dilton e o índio Beecuchê. Nada mais viram além de pingos de sangue aqui e acolá.
O ESTÔMAGO DE AVESTRUZ
Sergio
Vahia de Abreu, tal como o pai – o falecido Dr. Vahia – é um apaixonado da
caça. Sergio, todos os anos, mal desponta o seu primeiro dia de férias, empurra
num caso uma porção de miudezas, pula num “correio aéreo” e vem gozar no Xingu
seus dias de “descanso”. É extraordinária a capacidade que tem esse moço de
saltar do conforto ao desconforto. Com a maior indiferença sai ele do seu
apartamento em Botafogo e vem se espichar em qualquer chão enraizado da mata ou
nas areias encalombadas das praias. Rede é coisa que não tolera. Onde quer que
esteja, ao escurecer estende sua coberta e nela se deita. Raízes, folhiços e
tudo mais passam desapercebidos no seu sono tranqüilo. Sua única preocupação é
o pé. Descalço não dá um passo. Com bota não se acostuma. Sua saída é alpercata
roda ou tênis. Frágeis, esses calçados não suportam a agitação do dono. Daí o
contar a sua bagagem sempre uma meia dúzia de pares. Acontece, porém, que
qualquer olhar comprido aos seus calçados, vai ele dispondo um a um até que o
último já velho, rasgado, quase sem sola, recebe uma série de amarrilhos com
tiras e cordões que cruzam pela sola, torcem pelo tornozelo para depois de
outras voltas complicadas irem rematar no peito do pé. Sergio é disposto, forte
e agüenta longas caminhadas. Está sempre pronto. Não importa a natureza da
coisa a fazer. Garfo excelente, mastiga com o mesmo prazer um tucunaré (peixe
bom) ou um macaco preto; um macuco ou um gavião; uma banana maçã ou sementes da
bananeira brava. Com a mesma disposição que bebe a água de um ribeirão fresco e
claro, toma água turva da poça. Nas corredeiras era sempre um dos primeiros a
saltar na água e fazer força nos barcos. Nas caminhadas longas que fizemos nas
matas (mais ou menos uns 300 quilômetros) muito sofreu ele com os pés mas nem
por isso se lastimava. Clemente, um sertanejo que conosco estava, foi quem
melhor definiu o filho do Dr. Vahia – “Esse moço é de natureza rude”.
CHILENO
DÁ O PREGO
Dos
vindos do Rio resta ainda lembrar o chileno Jorge. Dinâmico no início, foi
rapidamente baqueando. Franzino, com seus 50 quilos distribuídos num 1.50m,
abafado numa camisa de meia-lã e enfiado numa calça grossa de dançador de rock,
o nosso homem logo na chegada era duma atividade impar, vivo e comunicativo.
Conseguiu, porém, no correr da viagem, se indispor com quase todos. Ninguém
conseguiu divisar o seu dorso nu. A camisa, sempre a camisa de meia de lá como
uma segunda pele, cobriu-lhe o tórax mirrado todo o tempo. Pronta a
picada, plantado o marco do centro geográfico, resolveu o chileno acompanhar o
Sergio da beira do rio até lá. Caminhada cansativa de 40 quilômetros em picada
nova. A ida foi razoável. A volta, porém, cansou o chileno e quando em meio
caminho, pararam num córrego para descansar, ele ao recomeçar a marcha, com
pernas bambas e braços caídos, o fez saindo em sentido contrário. Sergio, certo
de que ele ia voltar um pouco para apanhar alguma coisa, esperou. Vendo que o
chileno continuava caminhando advertiu-o: - Ei, onde você vai? - Vou indo embora, é lógico. - Por aí você está voltando,
rapaz, o caminho é por aqui. - Não é a
mesma coisa? - Uai... Os demais acompanhantes eram
daqui mesmo. Levamos conosco dois trabalhadores – Raimundo e Clemente, vindos
do picadão do Cururu; José Milhomes, motorista; Patacu índio Kamaiurá; Raoni e
Beecuchê, Txukarramae; Pionin – menino Caiabi – e mais 3 indios desta mesma
aldeia, chegados havia poucos dias no nosso Posto. Seguiríamos assim até os
Juruna. Lá recrutaríamos mais uns dois ou três para as cachoeiras.
A SAÍDA
Num dos
primeiros dias de setembro, com o sol estalando, saímos do Posto Capitão
Vasconcelos com 4 barcos. O programa era grande: centro geográfico, subida do
Rio da Liberdade, descida do Xingu até a Serra das Coordenadas (batizada por
nós em viagem anterior), regresso até a cachoeira Von Martius e de lá, cortando
por terra até os campos do alto Rio Jarina. Logo na saída um dos motores começou a reinar. José
auxiliado pelo chileno, ainda com o fogo da saída, deu, em poucos instantes,
conta da pane. Os três índios Caiabi tinham trazido
a noticia da morte de dois seringueiros pelos Juruna. Vinham esses dois homens
dos seringais do Rio Teles Pires, viajaram no mínimo uns 40 dias antes que
chegassem à aldeia Juruna no Xingu. Estariam eles fugindo do seringal? Por que
teriam os jurunas matado os dois homens? Que estes índios não toleram
seringueiros era coisa que sabíamos de há muito tempo desde a sua pacificação.
Só eles sabem do quanto sofreram nas mãos dos seringueiros do médio e baixo
Xingu. Contaram ainda os caiabi que os jurunas estavam ressabiados e retraídos.
Nem mesmo eles, os caiabi, logravam ser bem recebidos.Atingimos, no terceiro
dia de viagem, o Diauarum, Posto da Fundação anteriormente instalado por nós
quando da marcha da Expedição Roncador Xingu. Dilton e Adrian nos aguardavam
ali. Havíamos, dias antes soltado um barco com carga grossa e gasolina, tendo
sido eles os condutores. Durante a viagem os caiabis adoeceram gravemente,
apresentando todos os sintomas da antiga asiática. Como não quiséssemos chegar
com índios doentes na aldeia Juruna, Cláudio ficou no Diauarum com todos os
doentes e a metade da farmácia, enquanto isso nós outros descíamos para a
aldeia. Combinamos que dois dias depois um barco viria para buscá-lo. Mesmo com
essas precauções foram os jurunas caindo doentes um a um. Avisado do que estava
acontecendo, lá veio Cláudio com todos os seus doentes para a aldeia, já não
havia mais razão para que ficassem separados e melhor seria reunir todos para
um melhor tratamento. Nessa altura os dois trabalhadores, Raimundo e Clemente,
os dois txukarramae, o Kamaiurá e o menino Pionin já andavam também com febrão
terrível. Diante disso não tivemos outro remédio senão amarrar na aldeia juruna
a expedição até que parte, pelo menos, do pessoal melhorasse. Quando isso
aconteceu alguns dias depois, iniciamos a descida para o ponto do rio de onde
deveria sair a picada para o local do centro geográfico. Cláudio ficava assim
com a pior parte da expedição, o tratamento dos doentes.
JATOBÁ GIGANTE NO CENTRO GEOGRÁFICO DO BRASIL
Tempestade
afunda os barcos – Corredeiras transpostas a braço – Marco de madeira no Centro
Geográfico – Visita aos botocudos – Légua de beiço do índio nos faz andar 6
horas na mata – Nosso grupo se divide (Correio da Manhã – 04 de fevereiro de 1959)
Felizmente
tínhamos remédios bons e em boa quantidade. Poucos dias antes de sairmos de
viagem uma das Universidades do SUSA (Serviços das Unidades Sanitárias Aéreas),
havia estado no nosso Posto. Era a terceira vez do ano. Os medicamentos por
eles deixados completaram, e bem, as nossas Farmácias – a do Posto – e a da
viagem. Dr. Noel Nutels, que lá esteve, tinha intenção de fazer com que a
Unidade seguisse conosco até as aldeias Juruna, Caiabi e Txukarramae, mas
atrasos imprevistos de nossa parte alterariam o programa geral da Unidade, já
esperada em outro lugar. Mas como lembrar é viajar um pouco, fomos lembrando
com Noel fatos e coisas de viagens passadas, quando ele, como médico da
Roncador Xingu, acompanhou a expedição ao alto Rio Maritsuá. Naquele tempo ele
não era só médico, era “pirangueiro” (pescador) também, era um alagoano que
entre um remédio e outro, cortava de facão, armava barraca e animava o
bate-papo à beira da fogueira. Lembramos do dia em que abusou da castanha do
Pará e andou correndo apertado segurando a barriga por causa do óleo danado...
Quem definia bem o doutor daquela época era o Zacarias, um piauiense da cara
larga, conversador e teimoso como ele só – “Esse doto é espeto”. Hoje
dificilmente poderá o antigo doutor das Roncador Xingu fugir “uma lua” (um mês)
para rever as águas do Maritsuá. Por quê? Porque no Acre ou na Rondônia, no Araguaia
ou em Bom Jesus da Lapa, milhares de sertanejos aguardam ansiosos aquele
punhado de “douto qui ranca denti, tira retrato dus peito, varcina, dá remédio
e inda passa cinema”. É isto o SUSA, para nós uma das grandes realizações do
Ministério da Saúde.
TEMPESTADE
AFUNDA OS BARCOS
Três dias
depois de nossa saída da aldeia chegamos ao ponto do rio marcado na carta.
Imediatamente, construímos um grande “tapiri” (rancho onde as águas chegam até
o chão), pois as primeiras chuvas da estação começavam a cair. Cobrimos o
ranchão de bananeira brava e nele ajeitamos toda carga dos barcos. Mal havíamos
concluído o rancho e nele guardado todo o material, menos os motores e
combustíveis, caiu uma violenta tempestade que levou os barcos ao
fundo. Consumimos quase 30 dias de serviço para abrir os quilômetros da
picada e demarcar o lugar do centro geográfico. Em todo o percurso não
encontramos senão mata densa, felizmente em terreno plano e bem cortada por
córregos. O Dr. Franklin fez a picada toda conosco. Já com Sergio na bússola e
baliza, Clemente e Raimundo no facão. Na cozinha o txukarramae Raoni, que
depois cedeu lugar a Patacu. A nós, coube a tarefa de medir a picada, isto
fizemos arrastando um cipó de 10 metros de comprimento e de uma polegada de
grossura. Tudo fizemos para que fosse a mais rigorosa possível a medição. Dilton, no acampamento da beira
do rio, ficou olhando pela carga. Com ele ficou uma parte do grupo. Cláudio
preso na aldeia Juruna, continuava lutando com os doentes, agora acrescidos de
Caiabis de outras aldeias. O marco
de madeira de lei que plantamos no local exato do centro geográfico, ponto
marcado em carta e transposto para a fotografia aérea foi deixado em local que
limpamos da vegetação. Para bem identificar esse ponto, deixamos no centro da
área que descobrimos um gigantesco jatobazeiro. Seu tronco media 6 metros de
circunferência e sua altura mais de 30.
O ATAQUE
DOS MOSQUITOS
A região
do centro geográfico é toda coberta de mata e o solo cheio de altos e baixos,
todo enraizado e com uma camada espessa de folhas. O terreno por uma série de
razões é o mais impróprio possível para abertura de um campo de pouso e
instalação de uma base que seria a complementação do trabalho que estávamos
iniciando. Cláudio debelada a gripe na
aldeia. Havia chegado a remo trazendo dois jurunas – Carandine e Pitsacá. Um
dos aviões da Fundação que nos sobrevoara, jogaria em frente ao acampamento, no
meio do rio, um bilhete contando que no Posto Vasconcelos a gripe levara alguns
índios. Reunido o pessoal, carregados os
barcos, saímos Xingu abaixo rumo à cachoeira de Von Martius. Estávamos perto.
No mesmo dia conseguimos alcança-la. Mal chegamos, os “piuns” iniciaram o
ataque. É alguma coisa de espantosa a quantidade desses bichinhos nas
proximidades dos pedrais. Em uma das viagens anteriores tivemos ali um homem
que necessitou ser retirado com urgência tal era o seu estado nervoso. Ainda
assim ficamos lá até o meio dia da tarde do dia seguinte. Havíamos assentado
deixar ali parte da carga, mantimentos, combustível e a maior parte dos
presentes para os Txukarramaes. No Rio Liberdade, nosso objetivo imediato,
iríamos encontrar um grupo não muito grande desses índios. A concentração era
ali mesmo, na região da cachoeira, bem além das serras que dali se avistam. A descida da cachoeira foi
trabalhosa. Quatro horas gastamos para vencê-la. Dr. Franklin no seu elemento,
pedras, corria agitado de martelo em punho colhendo fragmentos aqui e acolá. A
outra cachoeira, a segunda, foi bem mais fácil.
O RIO DOS
PEIXES ELÉTRICOS
Resolvemos
antes de subir o Rio Liberdade, completar no Xingu o nosso programa. Pouco
abaixo da foz daquele rio, na desembocadura de um ribeirão, erguemos um rancho
coberto com folhas de bananeira brava e ali deixamos o grosso de tudo, gente e
carga. Com um barco apenas, e com número reduzido de tripulantes, reiniciamos a
descida do Xingu até a serra das Coordenadas. O programa ai era exclusivo do
Dr. Franklin a quem interessava observar com cuidado as formações rochosas do
rio. Com seis dias de viagem chegamos de volta ao ribeirão. A quantidade de
puraquês (peixe elétricos) nesse córrego é grande, nos impressionou não só pela
abundancia como principalmente pelo tamanho. Novamente carregados os
barcos arribamos pelo Xingu e enveredamos pelo Liberdade. Com 150 metros na
foz, esse rio engana qualquer um. A uma hora de navegação apenas ele se torna
terrivelmente raso. Navegar por ele é arrastar barco horas a fio, por um pedral
infestado de arraias. Para um percurso que em navegação normal se pode fazer em
duas horas gastam-se oito, até dez. Assim que chegamos ao nosso acampamento,
velho acampamento de viagens anteriores, tratamos logo de erguer uma barraca e
descarregar os barcos. Tarefa essa enjoada e cansativa mas obrigatória, por
causa das chuvas.
LÉGUA DE BEIÇO DO INDIO
Raoni, um
dos Txukarramaes, logo cedo saiu para a aldeia, dali distante um dia bem
andado. Tínhamos presentes para o pessoal do seu grupo. Queríamos vê-los,
conversar, assentar planos. Três dias se passaram e nada de Raoni, nada de
Txukarramae. Nossa “bóia” lá na cachoeira de cima, 6 dias no mínimo, e nós ali
já sem arroz, banha escassa e farinha nula.No quarto dia ouvimos uns gritos
vindos de rio acima. Pouco depois, num barco que mais parecia cocho que canoa,
chegaram agitados dois índios – Mencrire e Tataire. Depois do choro ruidoso
(saudação lacrimosa) do encontro com Beecuchê, ficamos sabendo que eles haviam
mudado para mais longe. Daí a demora, tanto na chegada de Raoni como na sua
vinda. Resolvemos depois de esperar por mais dois dias a chegada de outros
índios – coisa que não aconteceu – ir até a aldeia que Mencrire dizia não ser
longe. Resistimos um pouco a essa viagem, pois o Dr. Franklin desde às vésperas
vinha passando muito mal, com uma forte disenteria. Finalmente concordamos em
ir até a aldeia. Num barco pequeno tocado por um
motor de dois cavalos saímos Liberdade acima. A aldeia, dizia Mencrire, era
perto e as casas na barranca do rio. O “perto” de Mencrire deu nove horas de
luta com os baixios do rio. Num determinado ponto designado pelo índio
encostamos o barco. Apressado e gentil, mandou ele que esperássemos um
instantinho, ia chamar o pessoal da aldeia. Beecuche ficou conosco. Como
queríamos surpreender os índios na aldeia, não atendemos Mencrire, saímos no
seu rastro. Beecuche não conhecia a aldeia da sua gente e por isso is de olhos
firmes no chão, rastreando Mencrire. Cansados, esfomeados e sedentos só
chegamos na aldeia noite alta, depois de seis horas de caminhada! Antes, porém,
já noitinha havíamos encontrado um grupo de índios chefiados por Kramúru que
vinha ao nosso encontro. Na aldeia encontramos, depois de uma gritaria tremenda
da chegada e uma agitação sem conta, meia dúzia de cobertas toscas em torno de
uma poça de água, já com cheiro forte de coisa podre. Não era propriamente uma aldeia.
Txukarramae não tem aldeia. Era sim um amontoado de tosquíssimas palhoças
cobertas com folhas de banana brava e palmeira. Havia uma anta inteira assada
com couro e tudo. Nada mais, além da anta sem sal e da água mal cheirosa. Assim
mesmo comemos e bebemos à vontade. A dormida foi ali mesmo, numa das palhoças
sobre folhas de banana. Rancho pequeno que mal coube para nós quatro, mais
recostados que deitados. Dilton a um canto roia uma costela de anta; Sergio
idem, acompanhando com golões d’água. Três mulheres pintadas de genipapo,
cabeça raspada de orelha a orelha, dançaram e cantaram até tarde. Na manhã
seguinte nosso café foi um pedaço de lombo de anta de mistura com uma espécie
de farinha que os índios obtém socando as sementes do fruto da bananeira brava.
Saímos logo após o “café”.
O GRUPO
DIVIDE-SE
Dez
homens seguiram conosco, iriam até o rio. Levavam pedaços da anta como
complemento da carga. Cada qual carregava a “matula” a seu gosto; Mencrire
trazia, batendo às costas umas seis costelas penduradas de uma embira que, como
cana coroa circundava-lhe a cabeça; Kramuru tinha dois palmos de lombo presos
na embira que trazia em volta da cintura; Matiba, a tiracolo, engordurando as
ilhargas, levava um naco respeitável de carne e gordura. Fizemos em menos tempo a viagem
de volta. No caminho alguma nenhuma encontramos. NO rio, fizemos dos índios que
vieram, portadores de uma série de coisas para os que ficaram na aldeia. No nosso acampamento chegamos
altas horas da noite, não sem antes tomarmos chuva pesada e fria por um bom
tempo. Dr. Franklin, um pouco melhor,
continuava ainda bambo das pernas, voz cansada, olheiras profundas e com um
medo danado de se alimentar. Bem cedo
carregamos os barcos e saímos de volta para a cachoeira. Conosco seguiram
Kramúru, Cobre e, ainda Beecuchê. Vinham para nos acompanhar ao “capoto” –
campos – do alto Rio Jarina. Só no
sexto dia atingimos o alto da cachoeira Von Martius. Dr. Franklin, com seu programa já
terminado e ainda ressentido da disenteria, regressou dali para o Posto do
Diauarum para lá pegar o monomotor da Fundação e com ele regressar a Aragarças,
de onde continuaria a viagem para o Rio, no Correio Aéreo Nacional. Dilton já
com o tempo de licença esgotado resolveu aproveitar o barco e também seguir
para o Diauarum e, de lá, o itinerário do Dr. Franklin. A mesma coisa aconteceu
com Adrian, já com passagem reservada para o fim do mês para a sua Inglaterra.
O chileno Jorge, na mesma ocasião, saiu demandando para o Rio.
FANTASMA DA SÊDE RONDA A EXPEDIÇÃO
(Publicado
originalmente no jornal Correio da Manhã – 5 de fevereiro de 1959) Córregos secos dentro da mata –
Cipós e bananeiras selvagens enganam a sede – A ameaça dos botocudos – Cesna
pousa no campo aberto a facão e machado – Os bandeirantes dos ares – Como
caminhar na mata – A viagem de volta
Enquanto
alguns companheiros saiam de barco para o Sul, iniciávamos a marcha para o
oeste. Logo de início vimos que a coisa ia ser muito dura, pois a picada havia
desaparecido e tinha que ser reaberta. O peso distribuído a cada um não era
pequeno. Levávamos machados, enxadas, enxadões, além do peso da “bóia”,
calculada para 15 dias. Nosso programa era atingir a zona dos campos,
preparar uma pista para o Cesna e fazer contato com o grosso dos Txukarramaes,
que há muito tempo não víamos. Até o primeiro dia de viagem não havíamos
cogitado no problema de água. Com
tantas serras e tantas grotas não podíamos, nem de longe, julgar que a água
viesse a faltar. Na tarde do primeiro dia, nossa
parada para pernoitar foi junto a um córrego mesquinho, água azul, mais parada
que correndo. Logo no segundo dia o problema se apresentou sério – nada de
água. O caminho passou a ser mato limpo e mato sujo. Encostas pedregosas,
morrotes, grotas e socavões, mas água nada. Os índios também sedentos falavam
de grotas lá adiante, cheias de água perene. UM a um fomos cruzando por esses
lugares e encontrando tudo seco. De facão furávamos aqui e acolá na esperança
de uma cacimba. A terra nem úmida chegava a ser.Não perdíamos tempo, tocávamos
para a frente, queríamos água. Com a água limbosa da bananeira brava
umedecíamos os pulsos e dos cipós da sambaibinha tirávamos gotas que mais sede
traziam. Cobre e Beecuchê sugeriram caminharmos depressa para alcançarmos o córrego
grande. Era bem mais na frente, diziam mas lá nadaríamos. - Adjôen groen atá (depois da
serra tem água). Já era bem tarde quando começamos
a descer a serra. - Ngô, cati onia, (a água não
está longe), dizia Cobre. Com sol baixo, já escuro na mata,
alcançamos o tal córrego grande. A decepção foi tremenda. O córrego já não
existia. O seu leito, todo empedrado estava seco. Uma ou outra poça d’água
resistia ainda com um liquido quente, limbosa e com mau cheiro. De pronto não
dava para ser tomada, não pelo cheiro, mas pela temperatura. Acampamos ali
mesmo e ficamos namorando aquela água quente. Só bem mais tarde foi que
conseguimos tomá-la ainda um pouco morna, não sem antes taparmos o nariz. Teríamos ainda, antes dos campos
que ficam além das serras, mais uns 4 dias. Os índios já não garantiam
encontrar água. - Ngô capoto (água só no campo). Este, diziam mostrando o córrego
grande, era muito maior e secou. Uns momentos ficamos indecisos, continuar ou
voltar? Voltar teríamos a serrinha e além do riacho de água cinzenta e parada
do primeiro pernoite; pra frente, mata, mata e mata talvez sem água e lá
adiante, longe, bem longe o “capoto” com o córrego provável. Se voltássemos,
deixaríamos em meio a parte importante do nosso programa, os campos, os
índios...
O FANTASMA
DA SÊDE
Resolvemos
continuar. Procuraríamos água nos cipós, nas bananeiras, nos taguarussus, nas
cacimbas e apanharíamos água de chuva. Cachoeira? Faríamos força para beber o
menos possível. Não cozinharíamos nada., procuraríamos bananas em pés que os
índios sabiam perdidos nos cerrados de antigas matas. Por alimentação se a
banana falhasse, comeríamos caça abatida, assada e sem sal. Saímos cedo. Dia nublado e
abafado. A manhã passou rápida. Uma chaleirinha de água podre ia conosco. Até
as duas da tarde ela resistiu. Ninguém tinha coragem de um gole com gosto. Mal
se molhava a ponta da língua. Do meio-dia para a tarde os “sacos de água” que
andavam pendurados no céu, se foram de uma vez. Água de chuva naquele dia não
teríamos. Ao fim do dia alcançamos um grotão. Cobre de facão em punho,
saiu fazendo cacimbas aqui e acolá. Lá adiante, caminhando sempre pelo
“saradouro” conseguiu o índio encontrar uma poça de meio metro com três dedos
d’água por sobre um folhiço escuro e podre. Fizemos ao lado um buraco para que
a pocinha filtrasse pela terra. Nessa
altura a sede já não exigia água limpa. Havíamos cruzado lá perto, o
bananal com uma quantidade de porcos respeitável. Abatemos três. Kramúru e
Cobre pegaram um cada um. O outro lá ficou abandonado. A noite assamos e
devoramos porco sem sal. As nossas saídas passaram a ser
com o nascer do sol. NO dia anterior à nossa chegada aos campos demos quase
milagrosamente com um fio de água límpido cristalino correndo veloz sobre uma
areia branca. Ficamos ali mais de uma hora tomando água aos golinhos,
saboreando pachorrentamente.
A AMEAÇA DOS BOTUCUDOS
O
caminho, dali em diante, foi aos poucos se modificando. Andávamos agora em mato
e cerrado que se entremeavam. Num pequeno terreno alto e limpo, exatamente de
um lugar de onde se avistava por cima do vale de mata escura, as serras
distantes lá do “capoto”, deparamos, os índios primeiro, com um enfeite de
penas enroscado num arbusto. Para os índios tal descoberta foi como se tomassem
um choque. - Txukarramae capoto ingrugne (os
Txukarramaes do campo estão bravos), diziam. Distante por sobre o vale, a serra riscava o
horizonte. Os índios não escondiam o nervosismo. Mesmo assim foram
caminhando, só que agora mantendo uma conversação cerrada. A marcha
continuou e dentro em pouco desaparecíamos no vale escuro da mata. Ainda
naquele dia não alcançaríamos os campos. Em uma grota funda uma poça
d’água saciou-nos a sede. O resto do porco que, pendurado de uma embira, vinha
engordurando as ilhargas de Kremúru e Cobre foi esquentado e consumido. No
pequeno rancho coberto de folhas de bananeira brava, passamos a noite sentados,
por causa da chuva pesada que caia. Por uma folha disposta em bica
colhemos água à vontade.
CAMINHADA
NA MATA
Caminhar
na mata não é coisa tão fácil como pode parecer à primeira vista. Não é
apenas trocar passos, desviar o mato e ir avançando. Não nos referimos, é
claro, às andanças curtas em mato limpo. Passeios de caçador. Falamos de
entradas longas de dias e dias, de carga as costas. O mato aí fica traiçoeiro.
Forja ele mil armadilhas como que a cobrar na roupa e na carne do caminhante o
atrevimento de querer devassá-lo, de querer conhecê-lo lá bem dentro, na
intimidade. O próprio índio paga, às vezes,
com grandes sacrifícios essa intromissão. Conhecemos índios com olhos vazados
por pontas de pau, quase sempre secas. Avançar, não em trilhas já feitas,
e sim num rumo certo em mato bruto, é coisa cansativa. A todo o instante o
passo é tolhido por um cipó que enlaça o pé ou um buraco disfarçado por um
folhiço. Galhinhos fininhos ficam de longe parece que alteando e baixando, para
que não falhe o golpe em um olho. A estocada é certa, mas a pálpebra ligeira
ampara o golpe. Cipós de espinhos se comprazem em deixar passar o caminhante
para depois puxá-lo pela carne ou pela roupa. Enquanto isso, laçadas bem feitas, caprichosamente
dispostas, peiam o passante. Não se há de enervar e num arranco violento
arrebentá-lo. O cipó, se é fino não resiste, mas é que adiante dos outros e
outros estão à espera, e nessa luta não são eles que saem perdendo.
Companheiros seus lá estão para segurar-nos pelo pescoço, pelo meio do corpo,
pelo embornal ou pela carga. Varas dispostas em alturas estratégicas tiram-nos
o gorro ou chapéu e jogam-no ao chão. E como se isso não bastasse, raízes se
ocultam nas folhas para prender-nos o pé e, se caímos, não faltam nunca
pontinhas agudas à espera do baque. Na mata é andar, mas sem com ela lutar. É ir
desvencilhando-se dos cipós, dos espinhos, das raízes de pontas aguçadas, dos
buracos disfarçados e de muita coisa mais. Mesmo assim, dezenas, centenas
pagarão e, quando isso acontece não adianta praguejar, que só aumentará o
cansaço.
CHEGAM OS
AVIÕES
Foi no
oitavo dia da nossa saída da beira do rio, que chegamos nos campos. O lugar de
uma pista para aviões pequenos, lá estava mal assinalado no terreno. Sua
abertura tinha sido iniciada por nós há já alguns anos, mas, infelizmente, não
pode ser terminada naquela ocasião porque os índios, ali em grande número, se
desentenderam e iniciaram uma luta tremenda. Antes de mais nada queríamos
ver a água. Tocamos por isso, para uma matinha ciliar que corta o descampado.
Encontramos água bastante, mas parada. Parada, escura e meio limbosa. Para nós,
aquilo era água cristalina. No mesmo dia voltamos ao campinho para iniciar
a limpeza, pois havíamos prometido campo para avião pequeno para dali a dois
dias. Não podíamos perder tempo, o prazo era curto. Distribuímos o pessoal;
Patacu na cozinha, Kremúru e Carandine improvisando um rancho coberto com
folhas de bananeira, enquanto nós, de facão, enxada, enxadão e machado,
iniciávamos o campo. No dia combinado, logo cedo, ateamos fogo numa
clareira bem feita e, de tempos em tempos, jogávamos sobre ela galhos e folhas
verdes, provocando um imenso rolo de fumo. Sem isso o avião não encontraria o
local. Por volta das nove horas começamos a ouvir o motor. Folhas em quantidade
fizeram uma fumaça espessa e abundante. Poucos minutos depois avistamos os
aviões que se aproximavam. A base Xavantina havia mandado os dois; o Cesna
grande e o pequeno. O grande desceu primeiro. O piloto era Francisco Milhomem.
NO segundo aparelho, estavam José Genaro Gomes de Oliveira e Mikey, mecânico e
o mais novo piloto da Fundação. O quarto aviador, o mais antigo, Olavo Siqueira
Cavalcanti, agora acumulando as funções de piloto e chefe da Base, ficou para
vir na outra viagem.
OS
BANDEIRANTES DOS ARES
A
Fundação Brasil Central tem tido muita sorte com pilotos. Peritos, corajosos e
desprendidos tem eles enfrentado vôos longos e arriscados. Não sabemos se
já existe o “dia do piloto civil”, mas lembramos, para quando for ele
instituído, se é que não existe, homenagear nesse “dia” – o piloto civil do
interior. Do interior distante, do interior, do sertão. Do interior onde os
campos são de terra batida e, às vezes, improvisados. Onde a terra cruzada é
deserta, coberta de mata, cheia de serras e grotões, sem descidas de
alternativa. É sair e chegar. Não há recursos em meio de rota. O serviço
que essa gente presta ao país, ligando pontos distantes antes isolados e
esquecidos, só o reconhecimento pode compensar. O avião nesse nosso mundo do
interior chegou e está chegando antes de tudo; vem chegando com o carro de boi
e com as tropas de cargueiro. Quantas vezes não temos visto essa gente, em um
campo improvisado, “encaixar” o seu monomotor para socorrer alguém. Com ele ou
vem médico ou sai o doente. Nestes
longos anos de expedições, nos habituamos a vê-los destemidos, prontos, descendo,
subindo, cruzando distâncias enormes. Haverá isto em outro país? Com os pilotos combinamos uma
nova vinda para daí alguns dias, 12 no mínimo, pois pretendíamos tocar mais
para a frente para procurar melhores e maiores descampados para Sudoeste. Quanto
mais caminhássemos para esse rumo, mais perto ficaríamos do Centro Geográfico
que havíamos plantado nas matas do Jarina. Mal partiram os aviões, saímos rumando para aquela
direção.
O
SERTANEJO TRISTE
Chegamos,
depois de mais três dias de caminhada, aos limites das serras; para cá eram os
campos, para lá a mataria, bruta e espessa. Não foi perdido o nosso trabalho.
Deixamos no roteiro dois campos escolhidos, sendo que um deles já
demarcado. A abertura de um campo e instalação de uma base nesse local
constarão, se aprovado pela Presidência da Fundação Brasil Central, do nosso
programa de trabalho para os primeiros meses do ano. O trabalho ali precisa ser
executado com muito cuidado, pois a região é batida por índios ainda
desconhecidos e que são chamados pelos Txukarramaes de “Cren-acarore”. No sexto dia estávamos de volta
ao campinho onde havíamos deixado alguns dos companheiros de viagem. Logo no
dia seguinte ao da nossa chegada fomos fazer um repasse no campo e aumentá-lo
um pouco, pois o Cesna grande saíra meio apertado da última feita. Chico
(Francisco Milhomem) fora muito firme e perito na decolagem. No dia
marcado chegou o monomotor. Bruno Romualdo, funcionário do escritório Central
no Rio, veio acompanhando o piloto. O trabalhador Clemente, de todos nós, era o
que mais vinha sentindo a viagem. Amarelo, triste, andava embolado na rede mais
desanimado do que doente. O sertanejo gosta de estar no meio de companheiros
contando “causos” e lembrando fatos. Isolado, definha, entristece e é capaz de
morrer de nostalgia. Empurramos no avião o amarelo Clemente. No mesmo dia
aprestamo-nos para regressar à beira do rio. Ajeitamos as cargas. Sergio
completou os amarrilhos das alpercatas e saímos.
O SUMIÇO DO ALEMÃO
O único
que ficava lá naquelas lonjuras, para sempre desaparecido, havia de ser o
pretinho, cachorro pequeno, meio “bassée”. Pretinho tinha uma história.
História movimentada e cheia de viagens. Pretinho era alemão. Pretinho virou
Pretinho aqui neste país de bugres. Lá era Zuppel – com dois “p”. Pretinho
tocado por Hitler antes do fim da guerra, foi com a sua dona se refugiar em
Paris. Lá sua tutora casou-se com um etnólogo que acabou dando com os costados
da ilha do Bananal, entre os índios Karajás. Por coincidência, passávamos pela
ilha no dia em que o casal e tutelado, levantavam acampamento com destino ao
Rio. Combinamos com o piloto, em golpe não muito decente, que informasse aos
passageiros não ser permitido o transporte de animais. Isto feito na hora do
embarque, não poderia falhar, como não falhou. A dona não tinha outra saída
senão doar o tutelado e foi o que aconteceu, não sem antes ter havido uma
rápida cena de choro. Foi isto por volta de 1952. Zuppel, no Xingu, passou a
ser Pretinho. Valente apesar do tamanho não levava ronco alheio para casa.
Meteu-se por isso em tremendas porfias, saindo de uma delas com um olho vazado. Não foi bastante para arrefecer
seu gênio brigão. À medida que envelhecia, mais enfezado e neurastênico foi
ficando. Pretinho ficou no “capoto”. Não
morreu como qualquer cachorro. Sumiu. Índios? Onças? Não sabemos. Saiu e não
voltou. Pretinho, talvez, enjoado de todos e de tudo, resolveu devassar as
serras azuis dos horizontes, as campinas, as grotas, sem parar, sem dar ouvido
aos tiros de chamada. Foi para sempre.
A VOLTA
Com cinco
dias de caminhada cansativa chegamos ao rio. Nossa intenção era dormir um dia
todo, mas e os piuns? Piuns de dia, muriçocas (pernilongos) à noite, onde o
sossego? Carregamos os barcos e tocamos de volta. Antes despedimos, bem
carregados de presentes, Kramúru e Cobre. Para enganar as muriçocas saímos de
noite. Noite de um céu azul, cheio de estrelas e com uma lua grande e redonda
prateando as águas do Xingu. Os
Jurunas estavam bem. Ainda restava para completar o nosso programa, uma visita
aos índios Caiabis. Despedimo-nos dos Jurunas e subimos o rio Maritsauá.
Ficamos emocionados diante das roças imensas dos Caiabis! Plantios diversos,
tudo bem feito, bem plantado. Os mesmos Caiabis expulsos do S. manoel pelos
exploradores da seringa. Na segunda aldeia fomos recebidos pelo velho Vaifoá,
uma das mais belas figuras que temos visto entre os índios. Passamos uma semana com esses
índios. Nosso regresso a Capitão Vasconcelos já estava tardando. Há quatro
meses que estávamos viajando. No caminho, em uma praia grande, assistimos a um
dos mais belos espetáculos que pode alguém ter a sorte de ver numa região como
esta. De longe vínhamos observando uma mancha preta imensa numa praia.
Parecia-nos que a mancha tinha movimentos ondulatórios. Fomos nos aproximando e
só quando bem pertos notamos que eram passarinhos. Eram andorinhas. A
quantidade era tal e tão em segurança estavam que, para espantá-las, para uma
fotografia, tivemos que fazer uma pessoa sair correndo e entrar no meio delas.
Assim mesmo não fugiram. Foi necessário que jogássemos areia. O que vimos,
então, foi o levantar de uma nuvem espessa, densa e barulhenta. O Posto Capitão Vasconcelos foi
atingido alguns dias depois. Viemos tomando chuvas violentas e, no dia anterior
à nossa chegada, um temporal quase nos pôs a fundo. Uma notícia nos
aguardava em Vasconcelos, os índios Txikão haviam andado por perto e de
passagem pela aldeia Aueti tocaram fogo nas casas. Mas isso já é uma outra
história...
LIVROS DICA DE LEITURA:
Sou Selma de Andrade Gomes, filha do geólogo Franklin. Muito me encanta ler essas estórias do Centro Geográfico. Muito me orgulha relembrar o estilo grandioso do meu pai. Com tão pouco recursos da época marcou esse centro geográfico de um país tão grande. Meu querido pai morreu na Nasa, aos cinquenta anos era ainda um pesquisador cheio de entusiasmo. Saudades e saudades de um grande homem que foi o meu pai.
ResponderExcluirOlá Selma, sou Ana Cavalcanti, neta do Olavo Siqueira Cavalcanti. Acabei de achar esta publicação e fiquei emocionada. Estou construindo minha árvore genealógica. Será que o Sr Franklin teve algum contato com meu avô? Se souber de qq informação poderia compartilhar comigo por favor? segue meu e-mail: anacavalcanti74@hotmail.com
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