quinta-feira, março 29, 2007

UM INDIANA JONES EM QUARUP

O POST DE HOJE

Técnicos trabalhando na abertura de estrada no Mato Grosso (Xavantina-Cachimbo)

Muitos vão estranhar o fato de eu estar postando uma história que fala mais do Mato Grosso do que de Goiás. Bem, no meu ponto de vista, o Mato Grosso está fortemente ligado à Goiás, principalmente na época de sua expansão (por volta dos anos 40), quando Goiás serviu de "ponto de partida" e "base" (Aragarças que o diga). Também tenho que citar Rio Verde, Caiapônia e Goiânia.

Nos próximos posts, essa história ficará ainda mais clara. Este aqui abre as portas para uma série de artigos que pretendo publicar, todos falando do Mato Grosso.

Em todas as aventuras que irei publicar, vocês verão o nome de um tal SERGIO VAHIA, filho do médico Dr. Vahia, um dos componentes da Expedição Roncador-Xingu, de 44. Por coincidência (mais uma na minha vida) ele está morando em Goiânia há 12 anos. Tive o prazer de conhecê-lo e hoje o considero um AMIGO. Muitas histórias serão contadas e ele sempre será o narrador. Nada melhor que ele, que esteve presente e é uma testemunha viva dos fatos.

O acervo de fotografias do meu amigo ultrapassa 200 unidades. Aos poucos iremos postando as que forem liberadas. Mais do que um documentário histórico, esse material é a prova da determinação de um homem que, apesar de todo o esforço, tem a humildade de dizer que aquilo "foi apenas momentos de trabalho e muita diversão".

Espero que gostem do material. 

PC Castilho

"UM INDIANA JONES EM “QUARUP”

Uma verdadeira "pintura". Membros da Expedição Roncador-Xingu na margem esqueda do Rio Araguaia, onde onde se situa a cidade de Barra do Garças. Na margem oposta pode-se notar algumas casas de Aragarças, onde havia uma base aérea que apoiava a expedição. É interessante notar a ponta da ilha (à direita) , que fica hoje acima da ponte que liga as duas cidades.

“Quarup”, o livro de Antonio Callado, virou “Quarup”, o filme de Ruy Guerra. O cineasta angolano, antes de começar as filmagens em 1988, jantou na casa do escritor. Junto com alguns participantes do filme, para receber uma dose maciça de Xingu. Para botar a equipe que trabalhou na produção do filme – gente essencialmente urbana – a par do que era o Xingu, foi convidado alguém definido por Callado como um “Indiana Jones”. O nome é Sergio Vahia, funcionário aposentado pelo Banco Central, um dos que, junto com os irmãos Cláudio e orlando Villas-Boas, localizou o Centro Geográfico do Brasil em 58, a norte do Mato Grosso. Passou 10 anos dividindo a boa vida na cidade com expedições pela Amazônia, travando contato com tribos indígenas e testemunhando fatos de fazer inveja a Johnny Wessmuller (o Tarzan do cinema).

O sempre soridente Sergio Vahia, na época da Expedição Xavantina-Cachimbo.

Vahia se encontrou com a equipe que trabalhou no filme no início de maio de 1988 e contou alguma de suas histórias que, antes de virem a ajudar a compor o filme, já pareciam ficção. Taumaturgo Ferreira representou o padre Nando, principal personagem do livro. O ator descobriu que a distância entre a Globo no jardim Botânico e o centro do país é bem maior do que se pode imaginar. As histórias de Vahia, alguém que alternou uma juventude de motoqueiro de Copacabana com incursões pelo Brasil Central, impressionaram a equipe dirigida por Ruy Guerra, como certamente impressionariam alguém que nunca viu uma surucucu pico de jaca ou um índio suiá em seu primeiro contato com um homem branco.

Sergio, o caçador. Tipicamente trajado para a ocasião.

Vahia conheceu pela primeira vez o outro lado do país indo visitar seu pai, o doutor Vahia de Abreu, único médico da Fundação Brasil Central (FBC), encarregada de desbravar esta região do país. “Aquilo era um buraco; para se ter uma idéia, em Goiás Velho se levava um mês para fazer 800 km de caminhão”, conta Vahia. Isto foi entre 1943 e 1950, período que o pai permaneceu trabalhando para a Fundação. A primeira expedição exploratória organizada foi a Roncador-Xingu, da qual, além do pai de Vahia, faziam parte os irmãos Orlando e Cláudio Villas Boas. “Eu visitava a expedição sempre que podias, conheci os Villas Boas em 44 e andei por regiões perigosas como a dos Xavantes, que nesta época já tinham matado outras duas expedições”, lembra.

Um dos motores de submarino cedido pelo Exército Americano, que fornecia energia para a cidade de Barra do Garças. Solenidade de entrega do maquinário.

Em 1958, a FBC, acatando decisão do presidente Juscelino, decidiu organizar uma expedição para localizar o centro geográfico do Brasil. Os irmãos Villas Boas indicaram Vahia, a Fundação aceitou e lá foi ele novamente de Copacabana para o Xingu. Além dele e dos Villa Boas, a expedição contava com Dylton Mota, jornalista co “Correio da Manhã”, Franklin Gomes, geólogo encarregado de ajudar a localizar o centro e, segundo Vahia, “de verificar as suspeitas do governo de que havia petróleo na serra da Erosão, sul do Pará, perto do centro”, o inglês Adrian Caldwell e um chileno chamado Cabrera. Sobre este último, Vahia comenta que “era um bicão, se dizia jornalista, mas não era, nunca se molhou durante as travessias de rio, estava lá a turismo”. Outros componentes importantes no grupo eram os índios. Das mais diferentes tribos, eles ajudavam como guias, canoeiros, cozinheiros. Merecem destaque dois txucarramãe, Brecoxé e Raoni. O primeiro foi assassinado algum tempo depois por fazendeiros do Araguaia, o segundo é o atual combativo cacique Raoni, “que na época da expedição ainda era soldado raso”, comenta Vahia.

Um dos vários campos de pouso abertos pelos expedicionários. Na foto, o avião e o veículo da Fundação Brasil Central.

Vahia se recorda de que “a expedição durou uns quatro meses, mas dedicou seis meses a ela, entre preparativos e contatos com tribos depois da localização do centro”. Ele conta ainda que foi o único a participar de toda as etapas da viagem. Viagem que rendeu muitas histórias, viagem que talvez tenha inspirado Antonio Callado a escrever “Quarup”. O ex-funcionário público e sertanista de plantão lembra do dia em que eles partiram de Capitão Vasconcelos – “com arroz, feijão, farinha, café e uma caixa de garrafas de conhaque Georges Aubert”. Para os aficcionados de filmes de aventura, que esperam ler combates entre os desbravadores e indios selvagens, Vahia lembra do primeiro grande perigo enfrentado: um temporal, no inicio da noite, quase terminando a descida do rio Xingu. As canoas quase afundaram e o material teve que ser levado às pressas para a margem.

Caminhão da Fundação Brasil Central atravessando a estrada que liga a cidade de Itumbiara a Rio Verde (vejam matéria sobre a sua construção nos posts mais antigos).

Os momentos mais cinematográficos também aconteceram. “Uma vez, quando só estavam no acampamento o Brecoxé e o Dylton, uma pintada ficou rondando o lugar. O índio tinha matado uma porca do mato e aprisionado o filhote. Índio se borra de medo de onça, o Brecoxé passou a noite jogando a lanterna em cima de umas folhas de bananeira que ele espalhou para, com o reflexo, espantar a onça”. Os tragicômicos também não faltaram. Localizado o centro geográfico, terminados os estudos geográficos de Franklin Gomes – neste momento Vahia interrompe a conversa para lembrar que Franklin morreu do coração trabalhando para a Nasa por falta de socorro médico – Vahia, os Villa Boas e alguns índios fizeram uma caminhada de 20 dias à procura de tribos txucarramãe arredias. A picada não podia ser aberta em linha reta, avançava em zigue-zague, guiada por lugares onde tivesse água. “A fome dava para levar, mas a sede não”, conta Vahia., para depois lembrar de “quando, quase morrendo de sede, o grupo encontrou uma poça grande d’água, com uns dois dedos de profundidade. Antes que alguém começasse a beber, os txucarramãe, Raoni e Brecoxé sentaram-se na poça e começaram a tomar banho. Eu não queria nem saber se tinha lama, bunda de índio, mas Orlando teve um ataque de raiva e não bebeu”.

Sergio e uma india e filha da região.

No meio da conversa ele se lembra de um bom toque dado à equipe que ia filmar “Quarup”. “Muito cuidado com o banho de rio. Existe nos rios da bacia Amazônica um peixinho chamado candiru, não é história não, que entra pela ureta quando se está urinando e fica preso lá dentro. Já vi isto acontecer, é bom tomar banho de sunga”. Parece que outra dica importante para a produção do filme foi contratar os serviços de um índio txucarramãe. Vahia lembra que é comum, quando se está abrindo uma picada, surgirem muitos marimbondos, dispostos a defender sua casa. “Você tem que ficar parado”, avisa. “Brecoxé, com movimentos muito lentos, fincava o facão no chão, tirava um cachimbo do embornal e fumava, fumava. Os bichos ficavam meio zonzos e ele destruía a casa deles. Os animais, no caso dos marimbondos, quando não tem mais razão para lutar, desistem e vão embora”, conclui.

Avião de apoio da expedição Roncador-Xingu.

Atravessar uma cachoeira, que no rio Xingu se restringe a uma parte de corredeira forte e acidentada, era tarefa para um dia inteiro. Vahia lembra como se fosse hoje de momentos em que Cláudio Villas Boas e Dylton Mota quase morreram porque se soltaram da canoa. Vahia se confessa um amante da natureza, mas, apesar de todos os conhecimentos, já enfrentou algumas armadilhas. Lembra de um dia, chovia muito, ele, para não dormir molhado, tinha posto a roupa dentro de um saco plástico. Estava fora do acampamento e voltou correndo, nu, de lanterna e espingarda. Deu de cara com uma cobra grande e matou-a a tiros. Nem parou para olhar. Dois dias depois, passou pelo lugar e viu que tinha matado uma surucucu pico de jaca de 2,90m. “O veneno dela é menos forte que o da cascavel, mas ela é mais perigosa porque é grande, tem mais veneno e pica mais alto, mais perto do cérebro”, explica. Outra peça foi pregada durante um banquete. Morrendo de fome, o grupo encontrou no meio do mato um pé de pequi. “Alias, pequi é a única fruta que dá para comer no mato”, avisa Vahia. “Com fome você faz qualquer coisa, todo mundo caiu de quatro embaixo da árvore, comendo pequi podre, verde e maduro espalhado pelo chão. Mas, faminto, Vahia esqueceu que esta fruta tem dentro do seu caroço centenas de espinhos pequenos. Mordeu uma mais podre e ficou com espinhos na boca inteira.

Balsa para travessia de rio. Do outro lado surgiu Xavantina.

Depois de localizado o centro geográfico, a expedição seguiu ainda para o rio da Liberdade, a fim de encontrar a tribo txucarramãe onde vivia Mengrire, o índio gigante. “Medi o Mengrire e ele tinha um meto e oitenta e poucos. Ele era grande para um índio, mas o fato de ter menos de dois metros foi a maior decepção”, lembra Vahia. Em seguida o grupo, já desfalcado, foi até a serra da Erosão no Pará, verificar as suspeitas de que havia petróleo na área. Depois, ele e os Villa Boas, durante a busca de tribos arredias de txucarramãe, abriram um campo de pouso para avião, em local previamente combinado. “O piloto, ao invés de trazer água e comida, trouxe cachaça e turistas”, lembra Vahia, rindo mais de quatro décadas depois. Não tem tu, vai tu mesmo. A expedição atacou a cachaça. Vahia lembra que, sentado, com a caneca na mão, começou a ver o chão na sua frente oscilar. “Pensei que estava bêbado ou louco, mas sabe o que era? Uma árvore muito grande e raízes rentes ao solo. Quando batia um vento lá em cima, ninguém sentia, mas ela balançava e as raízes faziam mexer a terra”, responde.

Sergio Vahia e o tratorista (não identificado) posando ao lado da patrola que realizou os trabalhos da abertura de estrada, ligando Xavantina à Cachimbo.

Apesar dos perigos, Vahia só veio a abandonar definitivamente o Brasil Central em 68, por total asco à politicagem reinante. E somente uma vez se arrependeu de ter ido para o mato. Seu mais perigoso momento aconteceu depois que a expedição se desfez por completo, e ele veio para o Rio. Os Villas travaram o primeiro contato com os suiás, uma nação indígena que já foi a maior do Xingu, em fins do século XIX, antes de ser destroçada por diversas outras nações, reunidas única e exclusivamente para acabar com a hegemonia dos suiás. Um mês depois, os Villas boas escreveram para Vahia contando o primeiro contato com os suiás e detalhando o local da aldeia. Vahia foi atrás. Sem nenhuma preocupação, sua única bagagem era uma espingarda com 20 cartuchos, a lanterna e um 38 guardado na meia para não entrar areia. Conseguiu uma canoa com o jurunas, com quem tinha feito negócio um ano antes. Veio pegar a canoa, parte que lhe cabia no negócio um ano depois, e os índios cumpriram o prometido. Sem maiores preparativos foi ao encontro dos suiás. Os jurunas ainda tentaram alertá-lo, avisaram-no que os suiás estavam “zangados com caraíba, que caraíba tinha deixado feitiço”, conta Vahia. O feitiço era a gripe, deixada pelos Villas Boas no primeiro contato, conclusão a que Vahia só chegou no meio da noite, cercado por muitos suiás armados de arco e flecha. Para dar a real impressão da situação, ele lembra que “os índios nunca andam armados”. Seu coração disparou e, “pela primeira vez, ele se questionou sobre os motivos que o levaram a largar a boa vida em Copa e se enterrar no meio do mato”. Depois de muito discurso – ele não entende uma palavra da língua suiá – e cerca de 40 minutos tensos – Vahia viu que chegava o chefe e, atas dele, seu filho. O chefe falou muito, quanto maior o discurso, mais importante é o índio. O filho do chefe, mais esperto e mais falante, mandou que todos se calassem e botou a mão no coração. “Àquela altura, já conformado, meu coração já não estava mais disparado.Foi a minha salvação”, lembra Vahia. Graças à inteligência de Cuiuci, o filho do chefe, e ao coração de Vahia, este relato pode estar sendo contado hoje.

O Dr. Vahia de Abreu, posando com seus troféus de caça. Orlando Villas Boas disse em seu livro, "Marcha Para o Oeste", que o Dr. Vahia se dizia caçador sem nunca ter provado isso.