quinta-feira, setembro 03, 2009

Usina do Jaó – Patrimônio histórico jogado as moscas

Dizem que sem ela não seria possível o desenvolvimento da Capital de Goiás. Hoje em dia a Usina do Jaó no Rio Meia Ponte está entregue ao tempo, a começar pelo completo descaso com o próprio rio, que hoje se transformou num verdadeiro esgoto a céu aberto nos trechos que serpenteiam a cidade. Existem rumores da destruição de toda a estrutura da Usina. Uns dizem que por causa do mau cheiro que a água empoçada exala e outros afirmam que a barragem causa enchentes em alguns pontos a montante da usina. O mais interessante é que aqueles que reclamam de enchentes, apoiados pelo poder público na época, construiram suas residências justamente nos pontos de alagamento, trechos onde naturalmente o rio corre no período chuvoso. Abaixo coloco um trecho extraído do livro “Memórias de Pedro Ludovico” onde o fundador de Goiânia descreve a respeito do potencial hidrelétrico do Meia Ponte.

“Nesse rio existe a corredeira denominada Jaó com uma diferença de nível de aproximadamente de 8 metros, podendo fornecer uma força hidráulica efetiva na máxima estiagem de 450 ( quatrocentos e cinquenta) cavalos, que poderão vantajosamente ser aproveitados enquanto o permitir o desenvolvimento inicial da nova Capital.”

É uma pena que só ouvimos falar de projetos para a destruição, mas nunca pela conservação e tombamento de um marco na história do município. Abaixo coloco um link com imagens da atual situação em que se encontra a usina. Aproveitem

segunda-feira, maio 25, 2009

RONCADOR-XINGU

 A HISTÓRIA REGISTRADA EM FOTOS

 Na direção do Brasil Central, Uberlândia era naquela época o ponto civilizatório mais avançado. Dali partiam as estradas de terra ziguezagueando cerrado adentro. Algumas cidades prósperas, já em Goiás, como Rio Verde, Jataí, Rio Bonito – hoje Caiapônia -, eram ligadas por velhas “jardineiras”. Foi por esse caminho que seguiram todos os que saíram do Sul para participar da avançada rumo ao Oeste.

 Um visitante vindo da cidade grande, em pé na barranca alta do rio das Mortes, olhando a sua frente, além do rio, a vasta região de cerrado grosso nascido do solo seco do chapadão e divisando no horizonte longínquo a fímbria da serra do Roncador, fala a um sertanejo que está ao seu lado: - Bonito cenário, mas a terra parece um pouco seca, não é? - É, sim, senhor – responde o sertanejo. - Você que é homem da região, para o que serve melhor esta terra, agricultura ou gado? - Óia, seo moço, pra fala a verdade ela só serve pra faze longe. Isso aconteceu nos anos quarenta. O visitante sumiu, nunca mais voltou. O sertanejo morreu. E a terra do “fazer longe” hoje conta com inúmeras cidades e vilas, centenas de fazendas e, substituindo o picadão do começo, centenas de quilômetros de asfalto, como um risco negro no solo seco do chapadão muito além da serra distante. 

O acampamento da barranca é hoje a cidade de Xavantina.A nascente Aragarças, antiga Barra Goiana, estava surgindo nas terras do Pio de Barros. O ministro João Alberto, para evitar futuros aborrecimentos, resolveu comprar a gleba. O negócio não foi fácil. O velho Pio de Barros, que vivia dos seus negócios de pequeno criador, passou a olhar com desconfiança aquela gente nova interessada nas suas terras. Chamado para uma conversa, Mané Pio compareceu arredio, ouvindo muito, mas falando pouco. - Seu Maná Pio. Estamos querendo comprar as suas terras para construir uma cidade. O que o senhor acha disso? – perguntou o ministro. - É... depende – respondeu o velho. - Temos duas propostas – ponderou o ministro. - Duas? – indagou o velho. - É preciso que o senhor repare, estude bem e escolha aquela que o senhor acha melhor – voltou o ministro. - Entonce pode falar. - Na primeira nós oferecemos cinqüenta contos de entrada e cinco contos por mês enquanto o senhor for vivo. - Essa num tá ruim. E a outra? – indagou o velho. - A segunda nós damos oitenta numa pancada só, ficando assim tudo liquidado – concluiu o ministro. Mané Pio coçou a cabeça, fechou os olhos e olhou para o ministro. - Olha, siô... a premera é boa pra dana, mas o mio mesmo é dá logo os oitenta... sei lá! O negócio foi fechado. 


Restava agora conhecer os limites da gleba. Não havia um só documento que especificasse. Croquis, então, nem se fala. Houve uma descrição oral, rápida e sem rodeios. - Vosmicê desce o Araguaia até a boca do Rola (córrego). Daí sobe por ele arriba até as divisa do compadre Mané Bunda. Di lá vira às direita até a Serrinha que di lá inté dá pra enxerga. Chegano lá torna a virá as dereita e ruma até o Araguaia. Divisa cantada, negócio fechado. O dinheiro não demorou. Melhor mesmo teria sido se o velho tivesse aceitado a primeira proposta, pois viveu bem um punhado de anos depois do acerto.A Barra Goiana, hoje Aragarças, era uma corruptela garimpeira no começo. E nela vivia os “capangueiros” – os compradores de diamante ou donos de garimpo. Pedro Martins era um dos mais fortes compradores e, além disso, tinha uma casa comercial. Sua moradia, feita de taipa e adobe, era uma das melhores da vila. Bem barreada e pintada, chamava a atenção. 


O ministro João Alberto toda vez que ia à vila visitava Pedro Martins. Certa feita, o ministro e uma figura ilustre da embaixada da Espanha foram visitar a vila. Como não podia deixar de ser, a casa do capangueiro foi a primeira a ser mostrada ao visitante. Pedro Martins os recebeu na porta, e caminharam para a sala espaçosa. Lá dentro a visita, depois de ouvir do ministro como eram feitas as casas assim, uma construção puramente cabocla, virou-se para o dono da casa e indagou, num espanhol aportuguesado: - Bueno, bueno, esta casa é suya? Pedro Martins, ofendido, retrucou à altura: - Suja, não, sinhor. Tá muito da limpa, e o senhor me arrespeite! O ministro, que presenciou o diálogo, riu, apaziguador, e explicou ao ofendido dono da casa que ele ouvira mal, não era suja de sujeira o que disse o visitante. - Senhor Pedro, ele só queria saber se a casa é sua.


É comum ouvir-se nas conversas das gentes do sertão a pronuncia de certas palavra de maneira muito complicada. Numa conversa entre duas vizinhas, uma delas contava à companheira que havia espetado acidentalmente um prego enferrujado na mão e que o homem da farmácia consultado recomendou uma “valcina para tetrano”, o que levou a outra a corrigir: - Num é tetrano que a gente fala, é teto (tétano).Salomão tinha uma dor de dente crônica que não o deixava longe do ácido fênico. Tanto ia à farmácia da Base que o chefe médico Dr. Vahia resolveu incorporá-lo definitivamente ao ambulatório como enfermeiro. Ambulatório era o nome, em verdade era uma salinha com janela entelada, uma mesinha que suportava um estojo de metal com alguns instrumentos ligados à medicina: bisturi, pinça, espátula, tesoura, um rolo de gaze e outro esparadrapo. Embaixo da janela uma modestíssima mesa de curativo. Um fogareiro ”primus” fervia o “instrumental” cirúrgico. Coroando isso tudo, sem contar com o enfermeiro, que não distinguia uma cafiaspirina dum supositório, dos doutores mestres ali faziam milagres: Dr. Estilac e Dr. Vahia de Abreu. 


Numa tarde quente o Dr. Estilac lia algo filosófico, enquanto seu colega jogava paciência com um surrado baralho, quando entrou esbaforido o enfermeiro Salomão. - Seu douto, a tripa do roxo espocô. - Que tripa? Que roxo? Espocou o quê? Fale devagar e explique direito – Advertiu o Dr. Vahia. - Chegou na farmácia uma pai-d’égua (grande) de roxo (preto) com o bucho estufado. O tar tá numa gemeção... dois cumpanheiro truxeram êli. Os dois médicos mais que depressa, saíram para a enfermaria. Lá esticado no chão, gemendo e se contorcendo, um espadaúdo negrão. Os doutores puxaram a mesinha de curativo para o meio da sala e pediram aos dois acompanhantes que puseram o doente em cima da mesa e que não largassem dele um instante. Em rápidas apalpadelas o mal foi diagnosticado: hérnia “estrangulada”, ou “espocada” no diagnóstico de Salomão. - Vamos operá-lo – resmungou o Dr. Vahia. - É o jeito – concordou o Dr. Estilac. - O pior é que não há nem sombra de anestésico – acrescentou o primeiro. - Pra dor nóis tem cafiaspirina – esclareceu Salomão -, aquele do guaiacol! - Problema sério – concluiu o Dr. Estilac . - Anestesia “contensiva”: gente para segurar o moço. Tudo depressa, porque o motor da luz está ruim e já, já escurece. Zétola, radioperador, saiu e trouxe cinco “anestésicos” fortes, um em cada perna, um na cabeça e um em cada braço. Tudo pronto. O Dr. Vahia abriu a barriga do “roxo”. Ele embocava o corpo e desmaiava. O motor voltou a pifar. - Luz – gritou o Dr. Vahia. Salomão saiu correndo e trouxe um lampião “sonâmbulo” – o nome por si já diz, era o pior possível. - Luz – voltou a gritar o Dr. Vahia. O vivo Salomão saiu e voltou com duas velas. O Dr. Vahia, suando em bica, instruía: - Pra cá, seu bunda, pra lá, seu bunda! O “roxo” voltava a si e era uma dureza mantê-lo na mesinha. Na qual não cabia nem uma perna. Terminada a operação, faltava agora, fechar a barriga do “roxo”. O calor insuportável sugeriu que se abrisse um pouco a porta. Dito e feito, ordem é ordem. Aberta a porta, entrou, atraída pela luz, uma enorme mariposa! A dita deu um mergulho nas tripas do crioulo. O Dr. Vahia xingou a mãe da mariposa e lavou como pôde as tripas do “roxo”. A costura foi rápida. Não foi bem uma costura, mais um alinhavado! O Dr. Vahia esquecera que o enfermeiro era o Salomão do guaiacol e recomendou: - Amanhã cedo você faz uma lavagem com um irrigador usando este pozinho. Tudo terminou. O “roxo” anestesiado dormiu. De manhã Salomão pegou um regador, encheu d’água, pôs o pozinho e deu uma lavagem de corpo inteiro no crioulo. Ele variando saiu, caiu e arrebentou os pontos. O Dr. Vahia, xingando toda a geração de Salomão, suturou outra vez. O “roxo” resistiu a tudo. Nesta altura do tempo, quarenta anos passados (o artigo foi escrito nos anos 90), deve ser um “roxo” velho tomando suas cachacinhas nos botecos de beira-rio.O Dr. Vahia tinha um cliente do outro lado do Araguaia. O filho da doente tinha uma canoinha que transportava gente de um lado para o outro. Toda tarde o Dr. Vahia pachorrentamente ia até a beira do rio, tomava a embarcação do mocinho, dava uma injeção na velha e voltava. Fez isso vinte dias. Até que no último avisou o filho da doente: - Sua mãe já está boa, não preciso mais ir lá. Você não tem nada para me pagar, não cobro nada. - Sim, senhor – respondeu o mocinho. – O senhor trevessou o rio vinte veis, a dez tostões, são vinte mil réis. - E você tem coragem de me cobrar, seu bunda? - Uai, nóis veve disso... O Dr. Vahia enfiou sua mão no bolso, tirou os “vinte”, deu pro mocinho e saiu resmungando.


quarta-feira, maio 13, 2009

MINHA PRIMEIRA VIAGEM A XAVANTINA-MT


VIAGEM REALIZADA ENTRE OS DIAS 22 E 24 DE FEVEREIRO DE 2008

GOIÂNIA-GO/NOVA XAVANTINA-MT



Vista aérea da cidade de Xavantina

ROTEIRO DE VIAGEM:
22 de fevereiro de 2008
Horário de saída: 9:00hrs
Caturaí: 9:35hrs
Inhumas: 9:38hrs
Itauçu: 9:59hrs
Itaberaí: 10:18hrs
Parada para lanche: 10:41hrs (Posto Anhanguera)
Trevo Goiás/Jussara: 11:10hrs – estrada em péssimas condições de tráfego. 50 km de pista danificada – velocidade média de 30 km/h
Colônia de Uvá: 12:10hrs
Itapirapuã: 12:32hrs
Jussara: 13:00hrs - Parada para lanche, voltando às 13:30hrs
Aragarças: 15:20hrs – parada para abastecimento em Barra do Garças (do outro lado do rio)


Nesta junção do rio Araguaia com o rio Garças foi onde se estabeleceu, em 1942, a base da Expedição Roncador-Xingu, que ficava na margem goiana, defronte à foz do tributário.

Saída para Nova Xavantina às 15:38hrs
16:20hrs parada na Estação Rodoviária Vale dos Sonhos, onde encontramos o senhor Cachoeira, antigo integrante das expedições da Fundação Brasil Central na região.


Sergio Vahia e o amigo Cachoeira

PAULO (P) – O senhor é o...

CACHOEIRA (C) – Eu sou o cachoeira.

P – O senhor também trabalhou na época?

C – Iiiiiiiihhhh, trabalhei muito tempo. Eu estava me arrumando para ir para Xavantina também amanhã, mas acho que não vai dar certo.

SERGIO (S) – Eu vou também porque vou receber o título de sócio benemérito da Associação.

C – Você tem que ir mesmo.

S – Eu mandei, ano passado... eu fiz um álbum, aliás, dois álbuns de fotografias daquele tempo...

C – Daquele tempo velho.

S – Você vai na Associação dos Desbravadores...

C – Sei.

S – Lá tem um álbum da expedição. Deve ter umas 50 fotografias daquele tempo. Eu dei um álbum para o João Fernandes, que é meu amigo. O outro álbum ficou com o...

C – Ele vai passar aqui amanhã para me levar.

S – O João Fernandes? Falei com ele ontem pelo telefone.

C – Você está com quantos anos?

S – Oitenta.

C – Ah, rapaz. Eu to dentro dos oitenta.

S – Vou fazer oitenta em junho.

C – Eu sou de 28.

S – Vinte e oito de quê? De junho?

C – Vinte e oito de outubro. Heim, eu sou do dia 4 de outubro de 1928.

S – Você é mais velho do que eu então. Eu sou de junho... Outubro? Então é mais velho.

C – Você é de junho. Julho, agosto, setembro... só quatro meses. Ê cabra velho. A quantos anos? (Neste momento cachoeira abraça Sergio)

P – Em uma conversinha boba de boteco nós encontramos o senhor.

S – Tem também o Piauí ai, né?

C – Tem o Piauí e o Daniel. Você se lembra do Danielinho?

S – Eu acho que me lembro do Daniel, rapaz.




Boiadeiro tocando boiada na região de Xavantina. Foto dos dias atuais.

C – É pai dessa menina ai ó.

S – Um magrinho? Magrinho?

Alguém fala ao fundo: “Ele tá com oitenta e dois anos”

C – Eu fiz uma relação dos ‘jogadores’ velhos de 58... o José Gonçalves...



João Fernandes

S – José Gonçalves morreu, né?

C – Morreu. Eu botei tudo ai pra levar para eles. O Paulista morreu, você sabe, né? Morreu em Alta Floresta.

S – Morreu faz muito tempo. O Paulista morreu de raiva. Ele era muito raivoso.

C – Você tá maduro.

S – Não eu estou duro. Eu tive três acidentes em mergulho, fiquei paralítico.

C – Aqueles velhos de Xavantina acabou quase tudo.

S – Morreu tudo.

C – Eu tô duro ainda. Ainda subo essas serras todas em volta ai.

P – O senhor é o raizeiro daqui? (atrás dele havia uma pequena bancada de raízes)

C – Eu sou o dono disso tudo ai. (apontando para a estação onde estávamos)

S – Até há um ano e meio atrás eu subia a serra todo ano no Rio. Eu tinha um rancho a dois dias de viagem na serra.

C – Sei.

S – Você pensa que é mentira, mas não é não. Ele sabe que é verdade. (apontando para mim). Esse ai é meu amigo de Goiânia. Veio aqui pra me fazer companhia... ‘dama’ de companhia.

P – Vim pra andar à toa. A verdade é esta.

S – Agora é que eu fracassei de coluna, sabe? Não posso pegar peso nenhum. É foda. Eu tô fodido.Esses dias fui pegar o carrinho de feira... é bobagem.

C - O Virgilio vai vir.

S – Virgílio? Qual Virgilio?

C – O Virgilio irmão do Zé dos Anjos. Aqueles negros.

S – O Virgilio que eu conheço morreu muito tempo atrás.

(Sergio referere-se a Vergílio Nascimento, um homem gordo e forte, nascido na cidade de Meia Ponte (hoje conhecida como Pirenópolis-GO). Ele era o encarregado das tropas da expedição. Vergílio saiu por Goiás escolhendo animais, cangalhas e ajustando gente prática para a dura missão de tropeiro.)



Hotel Morada do Sol, onde ficamos hospedados. Excelentes instalações.

C – Não é aquele não.

S – O Sebastião Boca de Burro ta por aí?

C – Morreu há muitos anos. Ele morreu em 63 ainda.

S – Morreu de quê? De cachaça?

C – Não. Deu um negócio no coração. Tinha o Bastião... o Décio também morreu.

S – E aquele cara que comida cigarra? Não tinha um cara que comia cigarra?

C – O compadre Décio fumava demais!!!

S – Cigarra.Não é cigarro.

C – O “?????????” também morreu. Ele comia cobra.

S – Cobra não tem importância, dependendo como...

P – O senhor não vai amanhã para Xavantina?

C – Eu não sei. Estou entre uma coisa e outra... entre a faca e o facão.

S – Vai muita gente lá? É a primeira vez que eu vou. Ando tão ocupado na vida...

C – Dava muita gente, mas agora tá pouco.

S – Tá morrendo tudo.

C – Mas tem muita gente ainda.

GENRO – Ele procurou pelo velho Piauí.

(Alguém sabe me responder se esse tal Piauí é José Acelino de Almeida? Esse foi garimpeiro, soldado da captura da policia cuiabana. Tinha fama de valente.)

C – Tá aqui.Ele tem uma fazendinha ali. Toda vida daquele jeito... ruim, miserável.

S – Aquele mecânico da expedição, um mulato magro. Você se lembra?

C – Tinha.

S – Era um mulato sério, cheio de...

C – Era. Nego sério danado.

S – Uma vez a mulher dele, que estava com uma barriga grande, com uns cinqüenta anos ou mais, achou que ela estava grávida. Eles vieram para Aragarças para tirar o filho. Era um quisto. Rapaz, ela não acreditou. Pensaram que tinham roubado o filho dela.

C – Você se lembra do Chico Gueiroba?

S – Não me lembro.

C – Trabalhou com nós lá no começo da expedição. Um negão sério. Morreu agora... dia 15 de novembro fez um ano.

S – E aquele cara, puxa-saco do Paulista... um carioca...

C – O compadre Orlando? Morreu também. Tem uns quatro anos que ele morreu.

S – A mulher dele ainda tá viva?

C – Comadre Nicinha. Cortou a perna. Ainda tá viva. É minha comadre. O seu Alcides morreu.

S – Pôrra, o Alcides era meu amigo pra caramba.

C – Ele paralisou. Ficou...




Adão Gomes de Soua, Salomão, Sergio e Zé Goiás

S – Eu estive com ele lá em Goiânia e depois estive com ele aqui em Aragarças. Estive com ele duas vezes. Ele chorou tanto comigo, lembrou de tantas coisas que eu nem me lembrava mais. Ele teve até uns vinte ou trinta derrames, uma coisa assim.

C – Foi. Em setenta e sete foi quando deu derrame nele.

S – Eu tô morando em Goiânia.

C – Eu vou lá quase toda semana. Minha irmã mora lá no setor Coimbra.

S – Eu moro no Jardim América.

C – Lá onde mora o Baianinho, aquele que trabalhava na Fundação.

S – Este ano eu vou fazer uma expedição pelo Xingu.

C – Você vai lá?

S – Vou. Você não deve saber... ninguém sabe de nada aqui. Em 58 eu ajudei, com os Villas Boas, a localizar o Centro Geográfico do Brasil.

C – Antigamente era... eu lembro, rapaz. Era pra ser no Cururu.... o Centro Geográfico. Eu sei tudo. Eu trabalhei com o Orlando, quatro anos...

S – Não, não... pois é... Era pra ser onde é. Escuta só... eu fiz a expedição. Levou quase um ano. Todos morreram. Só restam vivos da expedição eu e o Raoni. Em setembro vou fazer uma nova expedição para voltar ao Centro Geográfico. Ninguém sabe onde é. Só eu sei.

C – É lá no Cururu.

S – Não é no Cururu. É no Xingu, entre o rio Jarina e o Xingu, na mata onde é o território do Txukarramaes, do Raoni. Ele já me deu autorização... ele vai junto.

C – Eu trabalhei lá no Diauarum. Trabalhei com o Orlando uns quatro anos lá.Você conheceu o Batista? Ele trabalhava com o Orlando, era motorista. Morreu agora.

S – Escuta, e aquele secretário...? Era um preto que pilotava... que entendia de motor de popa...amigo do Orlando... empregado do Orlando Villas Boas. Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx. O ‘Cearensão’ morreu também. Era muito meu amigo.Ele morreu de, como é que chama?

C – Coração. O Edson também morreu.

P – Chagas?!?


Sergio em um momento de "total relaxamento"

S – Chagas. Quem eu encontro sempre lá em Brasília é o... Sergio Patrola.Raimundo Pé de Patrol. Ele ta lá em Brasília.

P – Sergio, e ele (me referindo ao Cachoeira) não aparece naquelas fotos sua?


S – É possível. Eu tenho uma foto lá que aparece muita gente.


P – É uma onde tá todo mundo em pé perto da patrola.


S – É capaz que você está nessa. Vá na associação. Lá tem dois álbuns que eu trouxe. Tem umas 60 fotografias.


C – Nessa associação aqui?


S – De Xavantina,. Eu trouxe no ano passado. Procura o macarrão.


P – Fotografias da época.


S – Daquele tempo. Muita foto antiga. E aquele cozinheiro, o Manuel?


C – Manuel... trabalhava com nós lá.


S – Um dia deu um vento...


C – Ele foi com nós lá pro Xingu, ele esteve com nós no seu Manoel, pro igarapé do Bruno, lá pro Itapajós...


S – O que teve na estrada? Talvez você nem saiba disso. O Governo mandou parar a estrada de Xavantina a Cachimbo. Mandou parar no início...


C – Parou.


S – Parou o cacete. Me chamou no gabinete e mandou parar a estrada. Eu quis falar com ele mas nem me deu... não quis falar comigo, pô.


C – Ele gosta “dessa porra”, né? (Cachoeira se dirigindo a mim)


P – Carioca é desse jeito.


S – Ai eu fiquei puto. Era setembro/outubro e eu entupi de óleo diesel lá na frente. Mas antes disso eu já tinha andado a pé por lá. Do campinho de avião dos Ometo até nossas máquinas tinha um dia e meio a pé. O que eu fiz pra não ficar um beco sem saída? Eu peguei as máquinas,ao invés de ir para o Norte, como ia,eu dei uma guinada com as máquinas e botei elas dentro da estrada da Fazenda Suiá-Missu, que ligava a São Félix. Eu fui o primeiro cara a chegar a São Felix de Toyota por terra. A segunda vez que eu fui de Toyota...


C – Foi em 65... 66...


S – Não. Seis ou sete.


C – Sessenta e seis. Nós começamos ela em 20 de abril de 1964. Começamos lá no barracão do Capitão Décio.


S – Escuta só. Isso é outra história. Você está confundindo... Xavantina-Cachimbo. Capitão Décio é outra coisa.


C – Não, é essa mesmo. No dia 5 de junho o Governo de xxxxxFariasxxxxxxxxxxxx inaugurou a estrada lá no Areões. Fizemos lá um barracão e na segunda inauguração ele morreu e não veio. Eu era linha de frente naquela porra. Ora!


S – Você não sabe disso, talvez...


P – E lá hoje é o quê? Lá de onde saiu a expedição. O senhor consegue chegar lá hoje e dizer ‘foi daqui que saiu a expedição’.


C – Perto do Capitão Décio.


S – O que ele ta falando é onde acampou a expedição Roncador-Xingu. Isso é outra história.


C – Nós acampamos no primeiro barracão. Nós acampamos lá no Capitão Décio.


S – Desce um córregozinho? Tá, tá. Eu confundi o Capitão Décio com o Capitão Décio mesmo, que você falou em Rio. Escuta só. Ai ele mandou parar a estrada e a parar sabe onde? Um pouco depois de Cascalheira. Numa mata. No campinho do Mauricio.


C – Lá no Mauricio. Eu me lembro de tudo.


S – Sabe o que fiz? Desviei as máquinas. Botei as máquinas pra sair nessa fazendinha... nesse campinho, que era um campo da Suiá-Missu... não é o campo principal não. É um campinho menor. Então eu cheguei de Toyota a São Felix pela primeira vez. A segunda vez que cheguei de Toyota lá, o Coronel mudou o comando. Vamos ver se você se lembra. Até foi bom eu te encontrar aqui. Eu fiquei muito puto. Ele me tirou do comando sem falar comigo. Se você ta no comando você tem que chegar e falar “Sergio, vou tirar você e botar outro. Sou o Presidente e quero botar outro”. Você não pode tirar você e não falar nada. Mas escuta só... vamos voltar um pouco para trás. Eu fui acusado, pelo SNI, de ter desviado a estrada pára a fazenda Suiá Missu para ganhar dinheiro. Mas não deu em nada porque o que eu fiz eu expliquei: ia ficar um beco sem saída e o que eu fiz? Desviei a estrada. Ao invés de ir pro Norte eu dei uma guinada 30°/40° e entrei na fazenda Suiá Missu, ligando a São Felix. A segunda vez que eu fui a São Felix fui eu - com uma Toyota - , o Paulista e o major... major... Capitão França...




Dedo de Deus, formação onde foi feito o primeiro acampamento da Expedição 
Roncador-Xingu.

C – Major França.

S – Major, né? Quase sai na porrada com o Paulista...

C – Naquele tempo o chefe da Fundação era o Coronel Lontras.

S – Não, isso foi antes.Lontras foi quem criou a merd... que criou a estrada.

C – Aquela merda que fez lá. Toda a bagunça quem criou foi ele.

S – Merda não. Ele fez a estrada. Escuta só. No tempo foi o Edmundo que criou a estrada...

C – Edmundo é outro vagabundo.

S – Eu sei, mas quem teve a idéia da estrada foi ele.

C – Mas ele não prestava.

S – Era um filho da puta.

C – Ele foi lá no xxxxxxxxxxxxxxxxxxx mais ou menos uma hora xxpra dar um tiroxxxxxxxxxxx no Edmundo.

S – Você conhece o José do Xxxxxxxxxxxxx ?

C – Conheço o Zé do Xxxxxxxxxx, um baixinho. Eu fiquei uma hora esperando pra dar um tiro no Edmundo, mas ele não passou no piquete.

S – Não, não. Espera, rapaz.Me lembro de um duelo do Cláudio com o Murilo... Você se lembra do duelo? Chegou a ver o duelo? No córrego Xxxxxxxx. Não viu o duelo não, né? Depois eu te conto.Não dá pra contar aqui não. Mas escuta só... Essa estrada ficou parada anos, até que refizeram ela de novo. Agora, se não fosse eu com essa idéia de ter desviado lá pro XXXXXXX, ia ficar um beco sem saída.

C – Foi uma bagunça desgraçada. Estacionou no Mauricio... fizeram uma bagunça tão danada...Tiraram o Paulista da chefia... Novembro. Eu me lembro como se fosse hoje.

S – Dá licença. O Paulista saiu no início, no xxxxxxx xxxxx.

C – Né nada.

S – O Paulista saiu xxxxxxxxxxxxx. Eu substitui o Paulista. Agora, pode ser que o Paulista saiu porque ele quis dar uma de ‘se eu sair daqui essa merda vai parar’. E não parou.

C – Mas pararam.

S – Mas não parou. Tanto é que a continuou comigo.

C – Era tanta chefia naquele tempo que virou bagunça.

S – Mas escuta só... você não sabe que a coisa ia parar.

C – Eu vim embora. Lá do Mauricio eu vim embora.

S – Agora uma pergunta, você tava no dia em que me tiraram da chefia e botaram o Paulista de novo? Foi o Coronel Fabrício. Você tava com ele no dia em que eu me encontrei com ele em Xavantina no almoço?

C – Não, não estava não.

S – Eu queria saber alguém que estivesse lá.

C – Você se lembra daquele tempo em que eu dei uns tapas naquele cabra lá no Areões? Ele era chefe da ponta do Areão. Eu dei uma surra nele lá em Xavantina.

S – Tinha o pessoal que tirava areia, que era uma turma, o pessoal que tirava pedra, que era outra turma, tirar madeira era outra turma, fazer ponte era outra. Cada um com seus objetivos, o comando era um só. O pessoal seguia as (ordens) minhas lá. Mas é isso, rapaz. Você não sabia que haviam mandado parar a estrada. Você não sabia.



Sr. Alcides, Sergio e Salomão Gomes de Souza, primeiro Presidente da Associação.

C – Não sabia.

S – Pois é. O principal ninguém sabe. Agradeça a mim, a mim pessoalmente... eu fui acusado, porra.


C – Aquela estrada... a... a turma do... como é que chama?


S – Zé do Pito?


C - O dono da firma. Era do...


S – Ometo?





Centro de Eubiose, onde aconteceu a festa de 2008.

C – É, os Ometo. Aquelas máquinas tocaram com nós, porque a Fundação não tinha condições de enfiar aquela estrada por lá.

S – Tinha, tinha...

C – Os Ometo é que vieram de lá pra cá e toparam com a estrada.

S – Os Ometo acabaram. Eles fizeram o acabamento. Quem abriu a estrada fomos nós. Eles deram o acabamento, mas nós abrimos. A picada, as três primeiras laminadas fomos nós que demos.

C – O tratorista era o Xxxxxxxxxxxxxxxx, o Raimundinho Gonzaga... você se lembra do Gonzaga?

P – O senhor entrou na Fundação quando?

C – Em cinqüenta e cinco.

P - Então, quem foi baleado aqui no rio das Mortes, foi o Cláudio ou o Leonardo?

S – Ninguém foi baleado.

P – Foi.

C – Foi não.

P – Segundo Adrian Cowell, “Certa tarde, pouco antes da partida da Expedição ao Centro Geográfico, Leonardo Villas Boas havia sido ferido a bala na mão. Parece que um fronteiriço havia entrado em um armazém no Rio das Mortes e se embebedado com cachaça – uma bebida alcoolica retirada da cana-de-açúcar. Depois de tomar algumas doses, normalmente o individuo fica bêbado e se levanta a procura de inimigos, e neste momento, infelizmente Leonardo apareceu na entrada. O bêbado atirou em sua direção, errando os tiros, mas uma menina, que estava de pé alguns metros atrás foi morta, sua mãe gravemente ferida. Percebendo o que havia feito, o bêbado avançou na direção de Leonardo e entrou em luta corporal com ele, atingindo-o na mão com um disparo. O bêbado escapou entrando na floresta.

S – Então é. Eu não sei.

C – A briga que teve foi com o ... como é que chama? Arquimedes? Não.

S – Eu me lembro dos Caiados. Tinham algumas brigas esquisitas. Vamos embora.



Sr. Alcides Pereira da Luz e Paulo Castilho


Neste momento nos despedimos do Sr. Cachoeira e seguimos viagem. Saímos dali às 17:00hrs.

Um fato que me chamou muita a atenção foi o de termos parado justamente em um dos bares no Vale dos Sonhos, onde tem mais de dez, onde o proprietário era um antigo conhecido do Sergio. Foi muita coincidência.

Logo que reiniciamos a viagem, Sergio começou a reclamar de coligas intestinais, dizendo que estava para ter um “derrame”. Começou a procurar um lugar na beira da estrada para “aliviar” seu problema. Paramos ao lado de uma formação geográfica na beira da estrada hoje conhecida como Dedo de Deus. Ali, enquanto Sergio fazia seus “serviços”, aproveitei o momento para tirar algumas fotografias.

O lugar é fascinante. Passagem obrigatória para quem segue para Nova Xavantina. Na década de 40, quando Francisco Brasileiro (Chicão) e Inácio da Silva Telles, integrantes da Expedição Roncador-Xingu, líderes do grupo paulista, tomaram a iniciativa de fazer uma exploração além-Araguaia. Na exploração chegaram ao Bico da Serra Azul (hoje conhecido como Dedo de Deus), que fica a mais ou menos 70km do ponto de partida (base de Aragarças). Os setenta quilômetros até o Bico da Serra Azul constituíam um bom começo, já que até o rio das Mortes (final da primeira etapa) a distância seria outros 70km, mais ou menos.

Chegamos em Nova Xavantina às 18hrs. Fomos diretamente para o hotel Morada do Sol, que fica do outro lado do rio, região hoje denominada como Xavantina. Nova Xavantina está na margem direita do rio. Os dois municípios pertenciam a Barra do Garças. Naquela época Xavantina era do lado direito e o outro lado era conhecido como Nova Brasília. Os dois povoados foram elevados a município independente no início dos anos 80, passando a se denominar Nova Xavantina.

Em 1944, chegou às margens do rio das Mortes o segundo escalão, composto por 40 homens e liderados pelo Dr. Acary Passos, após 84 dias de avançada. O acampamento foi crescendo. O aglomerado de ranchos dava uma impressão de vila. Daí começou a nascer a idéia de um nome. O primeiro nome a surgir foi São Pedro do Rio das Mortes. Embora significativo, o nome não resistiu, talvez pelo tamanho. A fumaça do outro lado do rio, denunciando a presença dos Xavantes, acabou sendo o maior argumento para que a vila se chamasse Xavantina.

Às sete horas da noite estávamos deixando o hotel, indo a procura de uma sorveteria. Depois de rodar algumas quadras, encontramos a “Sabores do Cerrado”. Ali aconteceu outra grande coincidência. Pedindo informações sobre a cidade à proprietária, acabei descobrindo que ela era de Goiânia, que já morou no conjunto Aruanã II e que era ex-namorada de André Luis, filho do meu amigo José Antonio. 




Sergio e Paulo Castilho, voltando da festa de 2009

Depois da sorveteria, fomos visitar outro conhecido do Sergio, Helio Milhomen, que é irmão do falecido piloto Francisco Milhomen, conhecido como Chico Doido. Helio mora em uma bela chácara às margens do rio das Mortes, bem ao lado da cabeceira da ponte. Infelizmente eu não estava com meu gravador e não pude gravar a conversa. Ele nos levou de carro aos lugares onde teríamos que ir no dia seguinte. Após o encontro, fomos jantar na churrascaria próxima ao hotel.

Francisco Milhomen (Chico Doido) morreu em um acidente aéreo em Santa Catarina, numa ravina traiçoeira embuçada na neblina.

Na manhã seguinte, andando pelas ruas da cidade, estávamos indo ao encontro de José Fernandes, amigo de Sergio e responsável pela Associação dos Desbravadores de Xavantina. Ao pedir informações para um senhor, que estava acompanhado de sua senhora, tivemos uma grata surpresa:
SERGIO – Eu vim pra festa aqui.

ALCIDES - Pra festa? Nós viemos pra festa também.

S – O senhor é daqui de que ano?

A - Do tempo do Coronel Vanique.

S – O senhor se lembra do Dr. Vahia?

A - Dr. Vahia? Eu operei com ele lá na Barra.

S – Meu pai.

A - Seu pai? O Dr. Vahia? Olha, essa operação aqui quem fez foi ele. (mostrando uma cicatriz no abdômen)

PAULO – Apêndice?

A - Apêndice. Lá em Aragarças.

P – Qual é o nome do senhor?

A – Alcides. O senhor sabe quantos anos eu trabalhei na Sudeco? (Alcides Pereira da Luz)

Dia 31 de janeiro de 1948 os irmãos Villas Boas ficaram sabendo de irregularidades de ordem moral por parte de um dos encarregados no acampamento e determinou que ele entregasse o seu posto aos cuidados do Sr. Alcides, que era de grande confiança.

S – Não.

A – Vinte e oito anos. O senhor conhece os Villas Boas? Mas me diga, o senhor é pai do...

S – FILHO do Dr. Vahia.

A – Dr. Vahia!! Onde o senhor mora?

(Dr. Vahia de Abreu era extrovertido, falante e brincalhão. Contava muitas histórias sobre suas caçadas. Foram tantos apêndices extirpados por ele que muitos, às escondidas, chamavam-no de “Dr. Apêndice”.)

S – No Rio de Janeiro.

A – Ah, rapaz. Tem muita história boa pra contar aqui.

S – Eu freqüentei Xavantina aqui em 44, 45. Acampamento de palha...

A – Quando eu cheguei aqui a Fundação era lá na beira do rio, debaixo de um pau. Tinha o Rui, o Joaquim Nunes...

S – Rui, o gaúcho.

P – Então o senhor foi vitima do Dr. Vahia, no bisturi.

A – Fui. Agora, dos outros eu não estou lembrado. Eu já estava aqui, ai fiquei ruim do apêndice e fui pra lá de avião pequeno. Então o senhor é filho do Dr. Vahia....Huuuuummmmmm!

P – O senhor vai pra festa hoje, né?

A – Vamos. Chegamos hoje. A gente não conhece mais nada aqui não.

S – Você mora onde?

A – Lá em Aragarças.

S – Então tá. A gente se encontra na festa.




Dali continuamos nosso passeio pela cidade. Fomos até a casa de João Fernandes, próximo da praça onde tudo começou. A casa foi construída em 1951 para o Coronel Lontra. As reuniões da Fundação aconteciam ali. Também foi nesta casa onde Sergio teve uma discussão feia a respeito da construção da estrada.

A casa é muito interessante e conserva as características da época em que foi construída. Os detalhes dos portais, paredes, esteios e janelas são curiosos.

Fomos recebidos por João Fernandes na entrada:

JOÃO FERNANDES – Essa parte de cá foi construída em 1951. Depois foram feitos os anexos.

P – Que coisa bacana.

ESPOSA DO JOÃO FERNANDES (E) – Isso aqui é antigo, antigo. (que gentilmente me convidou para mostrar os detalhes internos de sua casa)

E – Aqui tem outro quarto. Quando o Projeto Rondon funcionou aqui, ali havia uma porta, agora a gente vê que ta caindo o reboco.

P – Deixa eu tirar uma foto da janela. Eu fotografei ela por fora.

E – Essa ai é original. Aqui tudo é original. Só tirou o forro porque ele apodreceu devido os cupins.

P – Isso aqui é metal? (referindo-me às grades de uma das janelas)

E – É ferro. Isso ai é original também. Aqui é o banheiro. A única coisa que fizemos foi colocar cerâmica.

P – Olha a espessura da parede!

Demos uma volta completa pela casa, saindo pela porta dos fundos, onde tem um grotão. Segundo o Sergio, foi nesse grotão que ele jogou uma lata de leite condensado. (incluir história contada por Sergio)

A esposa de João Fernandes conta aqui a história de um avião Bonanza que caiu em Aragarças no ano de 1954. O avião era pilotado por José Povoa (Juca), que foi surpreendido por uma pane durante a decolagem. A irmã dela estava no avião e foi a única sobrevivente. Ela foi encontrada sobre uma das asas. (contar mais detalhes sobre esse vôo).

E - ...então, depois que houve esse acidente, meu pai foi com a minha irmão para aquele hospital do Ipasgo lá no Rio de Janeiro. Ela quebrou o maxilar, fraturou o dedo, a perna... enfim, escapou com vida.Um avião Bonanza levantou vôo em Aragarças, ao fazer as manobras por sobre a serra, sofreu uma pane e caiu. Minha irmão foi jogada longe, por cima de uma das asas.

O acidente aconteceu em novembro de 1954. Ai nós viemos aqui pra Xavantina. De Aragarças para cá nós viemos de caminhão. Ficamos por aqui até 69. Depois terminou a Fundação e começou a Sudeco. Eu era professora. Aí saiu a transferência do João Fernandes para Brasília. Ficou eu, a esposa de um telegrafista e mais uma outra pessoa. Os três maridos foram para Brasília e nós ficamos aqui. Quando terminou o contrato – antigamente era só através de contrato. Acabou o ano letivo, acabou o contrato, ai eles contratavam de novo -. Ai, quando ele foi embora em 69, ele foi e depois nós fomos para Brasília. Ai eu fiquei lá trabalhando. Me aposentei em 91 mas mesmo assim ainda fiquei lá. Ele veio aqui pra essa casa em 81.Eu só vim em 93. Eu morava lá com a minha filha, que tinha um filho e que morreu também. Ele era professor lá em Brasília.


Xavantina em 2009


P – Entre Brasília e Xavantina, eu só mais Xavantina.

E – O João Fernandes veio pra cá em 1956.

P – Qual era o papel dele na expedição?

E – Não. Ele trabalhava na Fundação. Antigamente ele trabalhava no SPI (Serviço de Proteção do Índio), depois ele veio pra cá com o cunhado dele, que já faleceu. Ele veio pra cá para trabalhar com os xavantes lá pra baixo. Foi quando nos conhecemos. Ele veio em 56 e nos casamos em 57. Depois, quando acabou o SNI, ele foi contratado pela Fundação e quando acabou a Fundação ele foi pra Sudeco.

J – Pra você ter uma idéia, quando nós chegamos na Ilha do Bananal em 1960, já tinha índios carajás se prostituindo em São Felix. Eu escrevi um artigo sobre a situação da Ilha do Bananal que dizia o seguinte: “Infelizmente a Funai não soube tratar os indios carajás como deveriam. Tem índios carajás que poderiam ter sido aproveitados no artesanato, outros poderiam ser aproveitados na pesca do pirarucu e tem índios carajás que poderiam ter sido aproveitados numa das melhores fazendas que existem na região, que é a Fazenda Getúlio Vargas lá no Bananal. O gado lá não precisa nem de maiores cuidados... a terra é rica e não dá carrapato.

S – O Coronel Fabrício xxxxxxxxxxxxxxxxxxx ele chegou a me tirar daqui. Eu fiquei puto porque ele me tirou da chefia de expedição e botou o paulista – ele podia botar quem ele quisesse, mas tinha que me dar atenção. Pó, chego lá e os peões falam ‘você saiu, não é mais o chefe’... pó! Pode por quem ele quiser, mas tem que ter um comportamento. Eu fiquei puto. Vim de lá pra cá barbado, com revolver na cintura. Cheguei aqui tinha os puxa-saco em volta, acho que o xinguei até de filho da puta. Fiquei tão revoltado. Falei pra ele, ‘vou te tirar daqui em dois meses’. E tirei. Depois de dois meses ele saiu. Fui lá no Rio e ‘caguei nele’. Naquela época eu tinha nome.

J – Agora tem um camarada que mereceu sair pela Voz do Brasil.

P – Via rádio. (risos)

J – Saiu pela voz do Brasil... Dr. Fala Reto. Sabe por que?

S – Ele foi muito meu amigo.

Nesse momento José Fernandes nos deixou na varanda de sua casa e foi atender o telefone.

Da antiga casa do Coronel Lontra, fomos para a pracinha, próxima dali, onde foi montado o acampamento da Expedição Roncador-Xingu.

P – A esposa do João Fernandes tava me contando a história de um avião que caiu em Aragarças, no qual estava sua irmã.

S – A Fundação tinha três aviões Bonanza. Caíram os três. No mundo todo, os Bonanza sempre caíram.

P – Ela me contou que a única sobrevivente do acidente foi sua irmã, que foi arremessada para fora da aeronave e caiu sobre uma das asas.

S – O piloto era o Juca. Eu não o conheci.

Dali fomos para o salão Helena Jefferson de Souza, da Sociedade Brasileira de Eubiose (SBE), onde aconteceria a festa. O lugar é espaçoso e aconchegante. Fica de frente ao templo (o terceiro do Brasil), construído e inaugurado em 10 de fevereiro de 1976.


Festa de 2009, conversando com outro pioneiro.
A Sociedade Brasileira de Eubiose é uma sociedade civil, autônoma, genuinamente brasileira (embora tenha departamentos e representações no exterior), sem fins lucrativos, aberta a todos os credos, classes sociais, raças e sexos.

Encontramos, sentados na porta do salão, o senhor Alcides e sua esposa e outros integrantes das expedições.


ANTONIO (AF) – Sabe quem sou eu? Antonio Fernandes da Rocha, o mecânico da expedição.

S – Ah, é? Porra, rapaz! Me lembro de você carregando aquela porta, fingindo que estava trabalhando com ela.

AF – O senhor foi quem foi substituir a vaga do Paulista.

S – Foi, foi.

AF – Eu tava lá.

P – O senhor foi mecânico?!?

AF – Trabalhava de mecânico e encarregado.

S – E sua mulher?

AF – Minha mulher morreu.

Antonio Fernandes era o mecânico cuja esposa, na época da expedição, estava com a barriga grande. Todos achavam que era gravidez, mas segundo os médicos que a atenderam era um ‘sisto’. Depois da retirada do sisto, o marido achou que haviam ‘desaparecido’ com o seu filho.

P – Sr. Alcides, o senhor ia contando uma história lá do Xingu...

A – Eu sempre trabalhei ali no Xingu, eu fui pra lá ainda menino.

S – O senhor ta com quantos anos?


A – Eu tô com 78 anos.



A casa onde mora João Fernandes

S – Eu tô com 80.

A – Lá no Xingu eu passei uns oito anos e conheci o Cláudio e o Orlando. Quem ficava mais lá era o ‘seu’ Cláudio.

S – No Posto Leonardo?

A – Não. Geral... tudo. Tinha expedição de vez em quando, né? O senhor conheceu o Dr. Acary?

S - Conheci muito pouco.

P – Dr. Acary Passos de Goiânia. (O Dr. Acary Passos, na primeira etapa da Roncador-Xingu (Araguaia-Rio das Mortes), prestou bons serviços respondendo pelo segundo escalão.

A – Ele desceu mais nós uma vez.(trata-se da descida de Icaré até as corredeiras Von Dein Steinen – Setembro de 1948) Como é que chamava um gordão?

S – Noel Nutz. (O Dr. Noel estava no batelão n° 3 da expedição)

A – Veio um homem de Aruanã fazer os batelões.(Trata-se do mestre “sisudo” Palmeira, que segundo Orlando era a única pessoa capacitada para construir os batelões).

P – O senhor chegou a receber tratamento médico do Dr. Acary?

A – Não. Ele esteve com a gente no Xingu (Icaré).

S – Acho que ele não era um médico muito atuante.

A – Nós descemos o Xingu. Eu e o Dr. Acary e outro doutor.

S – Noel Nutels.

(Noel Nutels era malariologista, tisiologista e sanitarista. Russo de nascimento, engolido pelo Nordeste onde chegou menino.)

A – Eu não sei como ele se chama. Ai nós descemos. Quando nós descemos, eram dois batelões e uma canoa atrás (Na verdade, eram três batelões).

S – Motor Penta 4 ½ (o motor era Penta 12 hp).

A – Ai nós descemos e quando foi ali por volta de onze horas, os índios juruna escutaram a zuada. Eles eram bravos.

S – O capitão dos jurunas era o Bibina.

A – Eu não sei qual era. Ai o seu Orlando foi... o seu Orlando estava com a gente, o Dr. Acary, o Sebastião Garibaldi – telegrafista - estava com a gente também..

(O Dr. Acary não chegou a descer o rio. Ele regressou para a base no dia 13 de setembro em um avião conduzido por Olavo)

A – Nós encostamos os barcos na praia e os índios estavam do outro lado. Seu Orlando foi com o Cláudio e mais um outro homem, e um índio para conversar com os outros. Ficou só dois índios, o Pauadê e o pai dele, com um monte de flecha. Eles correram da praia. E o que eles fizeram? Correram e vieram lá pra trás de nós. O seu Cláudio, o Orlando e o outro homem foi lá e conversou com eles. Não era pra encostar todos... apenas um. Eles levaram cigarros e rapaduras para eles. Eles não entendiam o que era dito. Só estava os dois, o filho e o pai.

S – O resto tava no mato escondido.

A – É. Eles combinaram de nós ficarmos aqui... aqui saiu o Xingu, aqui sai o...

S – Maritsauá.

A – Não, o rio...

S – Suiá-missú.

A – Não, o rio Arraias.

S – Arraias não. Os jurunas não são do Arraias, são do Xingu.

A – É lá no Xingu. A aldeia deles era lá embaixo.

Os Villas Boas contam o encontro da seguinte forma:



Adão e sua esposa

“Depois de três horas de viagem, chegamos à barra do Maritsauá-Missu. Tal como na viagem do ano passado, avistamos dali as silhuetas distantes das palhoças numa ilha de areia. Encostamos as embarcações na bonita e grande praia da foz do rio, descarregamos o batelão pequeno que vinha a reboque e, acompanhados por um trabalhador e os três índios, descemos a remo na direção do aldeamento avistado.

Mesmo a distância começamos a ver inúmeras canoas tripuladas que desciam o rio. Quando pensávamos que não íamos ter a oportunidade de um contato, avistamos numa barranca alta, da margem direita, um grupo de índios. Entre eles havia um com a cabeça coroada por um enfeite de penas. Aportamos o batelão num baixio. Saltamos na água e caminhamos em direção da barranca. Mandamos que Tamacu os chamasse em juruna. Houve, então, um momento de confusão – eles respondiam e Tamacu não os entendia. Já aí estávamos perto da barranca, sempre dentro da água, e podíamos observar as feições dos índios. Tamacu continuava chamando, mas ouvíamos em resposta gritos como que avisando que não nos aproximássemos mais. Como insistíamos, eles recuaram e lançaram algumas flechas que vieram cair nas nossas proximidades, sendo que uma passou a alguns passos das nossas cabeças. Os surpreendidos desta vez fomos nós, pela rapidez com que executaram a ameaça. Nesse momento, Tamacu recuou rápido e gritou:


- Anité juruna. Txucarramae. (Não é juruna, é txucarramae)
Embora já tivéssemos sentido hostilidade, não recuamos, continuamos insistindo. Animamos Tamacu chamando com insistência. Houve um momento de compreensão. Tamacu, satisfeito, dá uns passos apressados na direção da barranca. Os índios recuam e entesam os arcos em nossa direção. Eram oito índios. Tamacu, novamente confuso grita:


- Tsiuiá, tsiuiá. (Suiá, suiá)


Estávamos ansiosos para terminar com o encontro. Pois sentíamos arrepios de frio, dado o longo tempo com água pela cintura, às vezes pelo peito. Tamacu toma fôlego e começa agora a chamá-los na língua suiá:


- Takará, tahahá caraí, ni nariá. Anorê quê tsiuiá. Caraí Itahahá (Takará – cacique suiá. Branco bom. Não tem trumaí inimigo. Venha cá, suiá)


Os suiás chamam os trumaís – seus inimigos – de nariá. Os índios se aproximaram mais da barranca e um deles, aquele de enfeite na cabeça, gesticulando muito, apontava uma direção e gritava:


- Tsiuiá.


Ao mesmo tempo que batendo no peito exclamava:
- Iuruna, iuruna. (Juruna, juruna)


Estávamos nesse momento bem próximos. Eles na barranca e nós metros abaixo, numa praia submersa, agora com água na cintura. Houve, então, uma conversa mais calma entre Tamacu e o juruna de enfeite na cabeça. Com muita cautela fomos chegando. O da barranca, ainda desconfiado, com a mão direita empunhando um molho de flechas, sinalizando para que não avançássemos mais nem um passo. Nisso dá um estalo na cabeça de Tamacu: ele lembra seu nome de menino na aldeia juruna e diz alto, batendo no peito:
- Xatuná! Xatuná!



Foi água na fervura. O juruna recolheu o braço e ficou olhando. Aproveitando o seu momento de estupefação, subimos a barranca e ficamos a três metros daquela estupenda figura juruna.”

O índio do cocar era Pauaidê e o mais velho era seu pai, Jubé.

A – Era bonito o lugar onde os dois rios se encontravam. Ai nós armamos a estação, esperando eles de vir ali na boca da noite, até o posto. Mas eles não vieram. Ai o seu Orlando passou um rádio para Xavantina, Xavantina passou para o Rio de Janeiro, que ele havia encontrado uns índios cabeludos que índio batia e não entrava. Quando foi de noite, deu nos jornais que ele havia topado com os índios mesmo. AI nós subimos o Arraia (na verdade, trata-se do Maritsauá-missu) e fizemos um campo lá em cima, mas o campo não agüentava as chuvas. Então nós voltamos e fizemos o campo lá no Diauarum. Esse Salomão ali estava lá.
Então nós fizemos um campo lá no Telles Pires. Naquele tempo eu era rapazinho novo. Ficamos 16 dias sem comer. senhor conheceu o Olavo?

S – Muito. Demais. Esse morreu de velho. Ele era o piloto chefe.

A – Ai veio um avião... a primeira vez que um avião grande jogou carga. Nós estávamos sem comer há muitos dias. Nós estávamos fazendo o campo, que ficava a poucos quilômetros da beira do rio. Escutamos aquela ‘zuada’ e achamos que era porco. Naquele tempo não tinha esse ‘rolo’ de avião não. O avião vinha lá daquele mundão. Correram e fizeram um fogo para fazer fumaça. O avião jogou 23 pára-quedas. Depois disso nós terminamos de fazer o campo.
O Chico (Francisco Milhomen) piloto voava lá no Cachimbo, na serra do Cachimbo. Lá não é serra não, não tem nada de serra. Ele voava lá. Voou por lá umas seis ou oito vezes. Ele tirou o rumo e disse que conseguia pousar lá. Chamou um capitão da FAB... dois aviões. Fomos três trabalhadores, seu Cláudio... o Orlando não estava... e os dois pilotos. Enxada, enxadão e machado. O aviãozinho desceu. Se desse para descer o primeiro, o segundo também desceria. Corremos acolá e cortamos alguns paus que estavam para o lado do campo, fizemos sinal e desceu o segundo avião. O seu Cláudio disse que ia embora e que era pra nós verificarmos se havia buracos e cortar alguns paus. Ele falou que voltaria no dia seguinte às 11 horas. Nós não tínhamos janta, nada pra comer... só no outro dia ao meio-dia. Então nós fiquemos. Moço, quando foi a noite, olha o medo... era só nos três. Armamos a rede lá, apanhamos alguns paus e fizemos um fogo. Passamos a noite.



Adão (antigo operador de rádio) e Sergio

S – Medo de índio?

A – Medo de índio e de bicho, né? No outro dia, quando foi onze horas veio os dois. Nós ficamos alegres.

P – Comida!!!!

A – Já trouxeram a comida pronta. Veio mais companheiros. Então resolveram fazer a mudança. Não sei quantas viagens deram do Telles Pires até lá. Trouxeram de dez a doze pessoas.A vantagem lá é que ganhávamos mais lá do que aqui.

A – Essa história talvez vocês não saibam... mas eu já tô assim meio esquecido... nós estávamos em um lugar... na picada, nós éramos cinco pessoas com o senhor Cláudio. O ‘seu’ Orlando ficava sempre fora. Nós fomos pra picada. Lá tinha muitas pragas, muita mesmo, tudo quanto é praga. Ai nós deitávamos e embrulhávamos. Era mais ou menos quatro horas. Estávamos longe da picada. Foi o senhor Cláudio que mandou a gente parar naquela hora. O companheiro deitou e veio outro companheiro e levantou a coberta dele. Ele falou, ‘deixe-me dormir’. Ele fez isso três vezes. Nós estávamos em cinco. Então o homem deu uma febre. Não tínhamos açúcar, não tínhamos remédios, não tínhamos nada, só feijão com arroz. O homem continuava ruim e resolvemos mudar de lugar. Eu cortei dois paus para passar ele pela água. Os paus estavam podre e não agüentaram. Eu quis colocá-lo nas costas mas ele disse que não agüentava. Segurei-o pelas mãos e o alertei sobre a correnteza. Se ele escapasse iria direto para o fundo. Eu atravessei ele. O ‘seu’ Cláudio então ordenou que eu fosse no ‘vão’ e buscasse remédios lá em tal lugar. Fui eu e um companheiro buscar o remédio. Eram dois dias para ir e dois para voltar – você não come nem pra ir nem para voltar... assim fica mais maneiro -. Fomos e pegamos os remédios. Quando chegava de tarde, isso aqui tava sangrando (mostrando os pés), tá tudo ruim... você senta e não quer mais levantar, a perna endurece. Quando nós chegamos eles estavam enterrando o rapaz. O rapaz tinha morrido... (nesse momento a narração é interrompida por um choro convulsivo do senhor Alcides, que emocionado, não conseguiu concluir a história)

P – Era malária?

A – Não. Era uma febre muito forte que só deu nele. Nós éramos cinco.

S – Baixa imunidade... se você não tiver imunidade a pôrra te pega e...

De acordo com os relatos dos Villas Boas, “a mata neste trecho resolveu testar todo o pessoal. Chegamos num córrego que outro não podia ser o nome senão o das Abelhas. Eram verdadeiras nuvens, que durante o dia molestaram os homens a ponto de inquietá-los... Já estávamos, nessa altura, conformados com os piuns, borrachudos, lambe-olhos, abelhas, quando uma nova praga surgiu: varejeiras. Um dos trabalhadores, o mais perseguido por elas, alcunhado de Luis Doido, chegou quase a enlouquecer de verdade... Marimbondo foi a praga seguinte... A tarde já vai indo e temos de procurar pernoite. Uma vez encontrado um bom lugar, temos de levantar um rancho rapidamente, coberto de patauá, mais um tipo de palmeira comum na região amazônica.

Ficamos preocupados com o trabalhador Antonio Alves da Silva, que adoeceu repentinamente. O mal veio violento e com sintomas desconhecidos para nós. A distância, as chuvas incessantes, o rancho improvisado e tudo o mais se juntou para esmagar o pobre doente e nos abater ante a nossa impotência em aplacar a febre cada vez mais alta que o acometia. Não saia de nossos ouvidos os lamentos do companheiro no seu incontido delírio.

Seu estado piorava a todo momento. Ao anoitecer, agora quase sem febre, com o olhar parado, alheio a tudo o que se passava ao redor, foi acometido de violento soluço.

Pouco depois, ao despontar do quarto dia, ele faleceu. Em homenagem ao companheiro morto, demos seu nome ao primeiro braço formador do rio São Benedito.”

Nesse momento, um outro senhor se aproxima e começa a conversar conosco.

Zé Baiano (Z) – Eu sou conhecido aqui como Zé Baiano. Cheguei aqui em 1948.

S – Eu cheguei aqui em 1945.

Z – Como é o seu nome?

S – Sergio Vahia.

Z – Ah, filho do Dr. Vahia, né? Muita satisfação. Quantos anos faz que a gente não se vê? O Dr. Vahia andou botando nome em córregos por ai, entendeu?

S – E não tem nenhum córrego com o nome dele. Não tem nada no nome do meu pai.

Z – O Dr. Estilac era mestre nisso também. Uma vez ele foi passar em uma pinguela ali e ela caiu com ele. O córrego tem o seu nome. Tem também o Primeiro de Maio, porque a expedição chegou lá nesse dia.

S – Tem o Capitão Décio.

Z – O Capitão Décio... capitão do exército, né?

S – Aeronáutica.

Z – Lá adiante tem um outro chamado Cachoeira, por causa de suas cachoeiras; depois o água quente, o índio... porque tinha uma aldeia de índios lá.
Faz muitos anos que eu não te vejo. Qual a sua idade?

S – Vou fazer oitenta.

Z – Cadê o seu Rolex?

S – Tá em casa.

Z – Não usa mais não?

P – Você tinha um Rolex, Sérgio?

Z – O pai dele deu pra ele.

S – Meu pai, o cacete. Na minha vida eu comprei um relógio só, em 65... 400 dólares.

A – Olha ali aquele velho.

S – Quem é ele?

Z – Quem é esse que eu não estou lembrado?

A – Ele é filho... irmão do Rosalino.

Toda essa conversa foi feita do lado de fora do salão de festas. A maioria das pessoas já se encontravam lá dentro e resolvemos entrar também.

Juntamos algumas mesas e ficamos sentados junto com a família de um antigo integrante das expedições, o senhor Adão.

Quero aproveitar o momento para agradecer a grande atenção que eles nos prestaram, desde o próprio Adão até sua filha e esposa. Não nos faltou refrigerante e até o almoço nos foi servido à mesa. Muito gentil da parte deles.

Adão (Gomes de Sousa) – Eu conheço o Sergio lá do Diauarum.

S – Desde 1951. Ele tomou um porre com Fogo Paulista.

Adão – Tomei um porre tão grande lá e o Sergio ria demais de mim.

Nesse momento chega um outro senhor a nossa mesa...

Raimundo – Eu sou aquele pão duro, telegrafista da expedição...

S – Raimundo.

Raimundo – Raimundo, o Dico.

Adão – Esse aqui é o Raimundo Pereira, o outro era o Raimundo Costa, que tinha o pé grande... Raimundo Pé Grande.

S – Em ’51 o Adão ganhou de presente uma garrafa de Fogo Paulista, bebida doce e que dá um porre! Ele bebeu tudinho. Olho grande! Passou a noite toda vomitando. Quando ele vomitava, “Aaaaaaaaaaaaaaaaah”, a cachorrada “Au, au, au” (risos).

Mais tarde, após a festa, fomos visitar o senhor Raimundo Ferreira da Silva, que havíamos encontrado no salão de festas. O Sergio queria uma conversa mais detalhada com ele e esse foi o motivo de nossa visita.

SERGIO (S) - ...Muita coisa eu esqueci, se apagou por completo. Gostaria de conversar com você, não sei sobre o quê, mas lembrar daqueles tempos em que nós trabalhamos juntos. Você começou a trabalhar comigo em que quilômetro mais ou menos?

RAIMUNDO (R) – No Turvo.

S – E foi comigo até chegar lá em São Félix. Você patrolando.

R – Patrolando... Eu fazia de tudo, uma hora estava patrolando, outra hora eu estava no caminhão.

S – E eu na picada. Você se lembra disso.

R – Lembro. Você tava na picada. Primeiro você começou na picada.

S – Depois eu assumi tudo.

R - O Noel junto, o Viana. Eu me lembro dos dois, que eram os topógrafos.

S – E o topógrafo que suicidou?

R – Era o Manuel.

S – Ele era topógrafo por correspondência, nunca viu um teodolito. Ele se apresentou e como eu precisava de pessoal... não tinha gente,

R – Tinha o Martinzão, que trabalhava com você. Hoje ele mora na Barra. Ele até aprendeu essa profissão de topógrafo e trabalhou no Estado.

S – Não me lembro dele. E aquele cara que comia cigarra, você se lembra?

R – Lembro, mas não me lembro do nome dele.

S – Então você se lembra que nós viramos a estrada para a direita. Você se lembra onde foi mais ou menos?

R – Onde nós viramos? Onde nós fizemos uma “perdida”?

S – Não, que eu virei para São Felix. Abandonei a estrada e disse, “Vou para São Félix”. Porque a estrada ia para o Norte. Eu parei naquele rumo e dei uma guinada para ir para São Félix.

R – Nós acampamos na beira de um córrego?

S – Não me lembro.

R – Lá tinha um córrego, antes de chegar no Turvo nós entramos à esquerda. Fizemos um acampamento na beira do rio e... até um dia apareceu uma onça lá e os caras ficaram todos com medo, pegaram as armas. Era de dia. A onça passou lá onde o trator tinha desmatado. Lá dava muito peixe. Era no Turvo. Eu me lembro que foi um velhinho pra lá e descemos até onde ele desemboca no Suiá.

S – Não me lembro disso.

R – Ele atirou num jacaré e pensou que ele havia morrido. Sentou em cima dele e o jacaré jogou ele na água. Foi eu, esses dois caras e o Chico meu irmão. Você tinha ficado no acampamento. A estrada ficou perdida porque lá no rumo não tinha avião, então nós voltamos pra cá do Turvo um pouquinho, ai pegamos aquela que foi direto lá no...

S – Então eu vou te contar um negócio. Nós não nos perdemos não. Eu é que resolvi ir para São Félix, porque a estrada não ia para São Félix. Eu fui de propósito para lá.

Eu tinha ido a pé na Suiá-Missu... tinha a Suiá sede, com um campo grande, e tinha um outro campinho de avião numa cidadezinha...

R – É lá na Fazenda Guanabara.

S – Não sei dizer. Dessa fazenda eu fui a pé, peguei um picadão velho. Logo comecei a escutar o ronco de motores. Fui em frente e sai na estrada que ia da fazenda até São Félix.

Então foi você que foi comigo de Toyota pela primeira vez.

R – De Toyota. Foi a primeira vez que nós fomos lá em São Félix e você passou um rádio para Brasília...

S – Dizendo o quê?

R - ...Que tinha emendado a estrada, que tinha chegado em São Félix.

S – Era isso que eu queria saber. Eu queria comprovar isso.

R – Eu fiquei em São Félix e você foi lá pra ilha. O rádio ficava lá do outro lado, na ilha. Você foi de barco.

P – Se o Raimundo era o patrolista naquela época, quem sabe ele não sabe o nome daquele outro que aparece naquelas fotos que você tem?

R – Sérgio, a primeira vez que eu vi você, você estava vindo lá do Manitsauá. Eu tava lá no Diauarum e nós não tínhamos nada para comer. O Sergio saiu lá pelo mato da Macauba e matou uma cotia.

P – O Sergio tem uma foto onde aparece um patrolista...

S – Era tratorista.

P – Não, não. Era patrola. Ela estava no fundo e você dois na frente. São duas fotos muito parecidas. Quem era aquele cara?

S – Você se lembra de um cara que tinha uns sonhos de noite e dava gritos?

R – Era um alto e magro. Ele não era tratorista nem nada. Ficou lá no patrol e depois deram um caldo nele pra ele ficar na Toyota.

S – Aquele mecânico era o meu vizinho... Fernandes...

R – Antonio Fernandes. Eu encontrei com ele lá em Aragarças.

S – Eu estive com ele hoje.

R – Eu não vi ele, rapaz.

S – Aqui em Xavantina ele era meu vizinho de fundo.

R – Uma vez você quase morreu. Foi mergulhar lá no Rio. Você veio aqui se recuperando. Marcou comigo da gente ir no Kuluene. Depois você não apareceu mais... sumiu.

S – Você soube de um duelo do Murilo com o Cláudio?

R – Não. Eu sei que ele era bom de tiro.

S – Quem trouxe o Murilo para aqui fui eu. O negócio da onça na canoa, por sorte, um ano antes... Teve um ano que fui eu, Raimundo Pé de Patrol, um cearense, um amigo meu do Rio, o Cabeleira... Teve uma encomenda do Dr. Sic... o Raimundo era discípulo do Dr. Sic... teve uma encomenda com um montão de coisas para pegar. Como eu vinha todo ano, o Sic me ajudou com gasolina e liberou o Raimundo e organizamos uma pequena expedição.

Nessas expedições a gente fica ‘preso ao fogão’. O cara vai lá no mato, dá uma volta e retorna para perto do fogão. Você não vai longe. Então o Murilo ficou preso ao fogão dos Villas Boas. Ele era empregado deles. Gostava de índios, aplicava injeções, dava cigarros. A mochila dele era só de cigarros.

R – E bala.

S – Ele atirava muito bem. Ai veio o Jânio Quadros. Os irmãos Villas Boas passaram a dominar a Fundação. O Presidente era outra pessoa mas que era amigo do tal de Xxxxxxxxxxxx . O Orlando prometeu de pés juntos que iria requisitar o Murilo e não requisitou, requisitou o Acary.

P – Acary Passos?

R – Dr. Acary.

S – Eu não conheci ele não. Era turista naquele tempo. Ai o Jânio caiu, e quando caiu acabou a requisição. O Murilo ficou tão revoltado. Ele era do tipo que não reclamava de nada, mas ficava se remoendo por dentro. Um dia ele tomou um porre...

P – O senhor disse que não gostava dos Villas Boas. Qual a razão disso?

R – Eles inventavam coisas. Eu trabalhei muito no posto lá do Xingu. Os índios chegavam a contar pra gente que eles mandavam os índios matar a gente.

P – Eles mandavam os índios irem lá no posto?!?!

R – Mandavam os índios lá no posto matar a gente. Os índios contavam, “O Orlando mandou nós vir aqui matar ‘ocês, mas nós não vem não. Nós gostamos de vocês”.

P – Lá no Diauarum?

R – No Diauarum. Índio falou pra mim assim.

S – Jurunas?

R – Jurunas.

P – Qual era a intenção dos Villas Boas?

S – Você não entende não? Uma morte aqui, o que valoriza o trabalho deles? Vou te contar uma coisa que ninguém sabe. Eu fui convidado naquela estrada, no início, ninguém sabe disso... você vai cair pra trás. Eu fui convidado pelo Orlando, Cláudio e Meireles pra sumir no mato no dia em que nos conhecemos... um mês, dois meses no mato, no início da estrada.

R – Eles não queriam que saísse a estrada, né?

S – E eu não topei. Eu não quis porque eles possivelmente iriam me matar. Naquele tempo tinha um tal de esquerda e direita. O nosso era o da direita. Quando o Paulista abandonou a estrada nos primeiros meses, ele pensou que a estrada fosse parar com ele saindo. Ele era o único cabeça. Ele era um cara bacana, trabalhador, conhecedor, mas era muito raivoso. Ninguém acreditava em mim... ninguém acreditava em ninguém. Eu era o carioca esculhambado, vivia contando piadas, falando besteiras... ninguém acreditava em mim. O Lontra me obrigou a seguir a estrada. Eu aceitei e dei certo.

Vamos voltar ao Murilo, então. Ele ficou revoltado com os Villas Boas.Pegou o telefone e esculhambou eles todos de filhos da puta, falsos nacionalistas... esculhambou. Eles nunca escutaram tanta coisa. Algumas verdades, outras exagero. E o Cláudio era metido a atirador. Atirador mesmo é aquele cara que atira em estande. Atirador de mato atira bem mas não é atirador. Você se lembra do Baiano?

R – Lembro-me. Ele pegava as garrafas de pinga, colocava elas em um lugar, virava e contava dez passos para em seguida atirar nelas, acertando todas. Certa vez ele me entregou o revólver. Eu consegui acertar duas.

S – Mas escuta só. Então o Cláudio sempre contava que era atirador. Ai eu fui chamado pra sediar a picada. Aliás eu era o sub-chefe, o CHEFE da picada era o Orlando, Cláudio e Meireles. Eu aceitei porque adoro ficar no mato. Falei pro Murilo, “Vamos lá pra expedição”, ele disse que não queria vir porque não queria encontrar com o Cláudio. “Esquece o Cláudio. Esquece essas brigas. Briga é burrice. Vamos lá matar um jacobim, um mutum...” disse eu tentando convencê-lo. Viemos e encontramos o Cláudio.

P – Então ele tinha uma raiva danada do Cláudio.

S – Tinha, mas ‘engoliu’. Ficamos amigos. Eu ficava no acampamento com os Xavantes. Vinha algumas coisas pra mim e eu sempre dividia com os índios. Eu nunca aparecia. Aquilo foi azucrinando o Murilo, ele achou que eu estava sendo lesado. Ele tava fazendo 41 anos.

Acordamos ainda no escuro. Nossa roupa não secava de suor. O café era farofa com arroz do dia anterior. O Murilo tava com o Baiano bebendo cachaça. Puta que pariu! De manha, beber cachaça antes do café?! Isso eu não faço e nunca fiz.

Antes disso nós fomos explorar uma mata alta, ai pousou um pássaro em uma árvore. Os dois começaram a falar “atira você”, “não, atira você”. O Claudio pegou o Magnum 22, com as duas mãos firmes no revolver deu cinco tiros no pássaro, errando todos. O pássaro ficou imóvel no lugar. O Murilo sacou do coldre o seu Magnum 44 e acertou o pássaro no primeiro tiro. O Cláudio ficou humilhado.

R – O cara não sabia atirar não, rapaz.

S – Mas era metido a atirador.

R – Eu era melhor que ele.

S – Peraí. Vamos ao principal, só pra você entender o cenário. Ai mudamos o acampamento para o córrego Boracaia, que eu mudei pra Broncaia.

R – Nesse dia eu não tava lá ainda não. Eu tava numa serraria aqui. Eu tava meio brigado com o povo da Sudeco, ai fui trabalhar na serraria.

S – Não tinha Sudeco ainda não.



Sergio e Sr. Antonio Fernandes, antigo mecânico da Expedição Xavantina-Cachimbo

R – Da Fundação. Na serraria que fazia madeira lá pras pontes. Ai o patroleiro deles não deu conta. Eu tava brigado com o Paulista. Ele não quis me levar. Eu tava lá na serraria e mandaram me buscar lá. Eu trabalhei seis meses durante a noite. Entrava seis horas da tarde e saia seis horas da manhã. Eu entrei lá no Boracaia e fui até o fim.

S – Mas escuta só, o Cláudio tava sentado na rede. Isso foi de manhazinha. O Murilo já tinha bebida uma garrafa de cana com limão, juntamente com o baiano. O Murilo chegou agachado por trás do Cláudio, sacou o revolver e apontou para ele: “Comunista filho da puta, saque seu revólver para que eu te mate.”, colocando o revolver no coldre, repetiu o ato outras vezes. “Comunista a gente mata pelas costas”, insistiu ele. Depois disso o Cláudio passou um telegrama desse tamanho para o Lontra.

P – Seu Raimundo, entre o Cláudio, o Orlando e o Leonardo, quem era o melhor? Ou quem era o menos pior?

R – Menos pior era o Leonardo.

S – Quanto tempo depois essa estrada foi reassumida?

R – Levou muito tempo.

S – Ela ficou quatro anos parada.

R – Depois disso, até era o Paulista o fiscal, ele pegou ela ali no Posto Teixeira... até ele me levou pra lá e ficou...

S – Quando é que foi isso?

R – Nem me lembro mais. Foi muitos anos depois. Eu até estive lá. Fui o primeiro balseiro lá do Xingu. Fui até o Peixoto de Azevedo. Depois emendou com aquela Cuiabá-Santarém.

S – Sabe quem mandou parar a nossa estrada? Porque parou a nossa estrada? Ninguém sabe por quê? Pra não disputar com a Cuiabá-Santarém. Se saísse a nossa primeiro, ia matar a outra. Como aqui não tinha poder de voto político, Cuiabá tinha poder de voto. Eu fiquei muito revoltado naquele tempo.

Nesse tempo que eu sai era o Fabrício... o negócio foi o seguinte, o Paulista entrou e ficou alguns meses, saiu pouco depois ali do Areões e eu assumi ali.

Você se lembra da picada da Coréia?

R – Antes de Igarapu.

S – Justamente. Eu passei uns dois meses ali.

P – Isso é aqui em Xavantina?

R – Atravessou pro outro lado já é a Coréia.

S – Nos areões tem muito jacaré grande.

R – Não tem mais não. Você se lembra daquele grande que você ia entrar dentro da boca dele?

S – É isso que eu ia contar agora.

R – Eu tava junto.

S – Eu tenho a foto desse jacaré.

R – Você disse que queria tirar uma foto dentro da boca do jacaré. Eu cortei três paus e enfiei na boca do jacaré. Ele estava morto e nós trouxemos ele, segurando em suas patas. Colocamos ele na praia. O Sergio queria tirar uma foto dentro da boca do jacaré. Eu cortei os paus para colocar na boca dele.

S – Não foi uma pedra?


Raimundo Ferreira da Silva, patrolista da Fundação Brasil Central

R – Não, a pedra você jogou nele depois. Colocamos os paus na boca dele e conseguimos abrí-la. A boca ficou enorme. Eu falei pro Sergio entrar na boca e ele não quis. Pegou uma pedra e jogou dentro dela. O jacaré fechou a boca na hora, quebrando vários dentes.

Eu era o patroleiro mais afamado, que agüentava o serviço. Eu fazia de tudo, patrol, caminhão, serraria. Eu tinha brigado com o Paulista, por causa de umas madeiras. Ele gostava de xingar as pessoas e não gostava de ser xingado. Ele veio me dar bronca e acabei dando uma bronca nele. Nós quase partimos para os tapas. O Paulista era bruto. Depois disso eu fui pra serraria que tinha aqui nessa estrada da Coréia. A serraria era chegando nos Areões. Eu tava lá trabalhando quando apareceu uma Toyota para me buscar. Eu não queria ir, estava bem ali. Disseram que o Albertino não trabalhava e que precisavam de mim.

S – O Albertino não queria porra nenhuma.

R – Só vivia bêbado. Eu fui contrariado. O Paulista ficou bonzinho comigo. Depois ele foi fazer umas estradas pra Goiás e eu fui pra lá com ele. Eu era um cara que trabalhava mesmo.

Nós discutimos aqui numa estrada, perto de uma cachoeira, onde seria feita uma usina. Eu estava desmatando com a patrola até lá. Quando eu vinha de lá pra cá, havia um capão de côco e ele queria que fizesse uma estrada até lá. Já era de tarde. Ele ia na frente me orientando. Eu tava com medo de derrubar alguma árvore em cima dele. Ele insistia nervosamente que eu andasse depressa, o que eu não fazia para não ferí-lo com algum pau. Começou com ignorância e logo estávamos discutindo.