sexta-feira, novembro 16, 2007

SEGUNDO CONTATO COM OS ÍNDIOS SUIÁS


1958/2008
SEGUNDO CONTATO COM OS INDIOS SUIÁS - 1959

por Sérgio Vahia de Abreu

Em Meados de agosto, na época da desova dos tracajás (espécie de tartaruga pequena), mais uma vez, fiz em 1959, sozinho, excursão particular ao rio Xingu.

O acesso àquela região era somente feito através dos dois campos de pouso da FAB, situados no rio Kuluene, rota do Correio Aéreo Nacional – CAN. O ingresso naquela área só era permitido com autorização extremamente restrita da FAB, da Fundação Brasil Central – SPI.

A estrada mais próxima do Alto Xingu distava alguma centenas de quilômetros, bem como qualquer tipo de civilização.

Naquele ano, a minha incursão foi bem melhor que as dos outros anos, pois utilizei um avião só para mim.

No ano anterior (1958), durante a expedição ao Centro Geográfico do Brasil (VIDE INFORMAÇÃO DETALHADA NO RELATO DA EXPEDIÇÃO AO CENTRO GEOGRÁFICO DO BRASIL) tratei, no Xingu, com os índios jurunas – meus conhecidos de outras viagens – a construção de uma canoa, em troca de um rifle 22 e 2 caixas de balas. Ela me seria entregue no outro ano (na época da desova dos tracajás).

Meu conhecimento e amizades na FBC (órgão federal de desbravamento) foram iniciados em 1943, quando meu pai – Dr. Vahia de Abreu – era médico da expedição Roncador-Xingu, entre 1943 a 1950, a qual modestamente freqüentei por anos e que me proporcionaram inúmeros favores tais como passagens aéreas, remessa de gasolina, de cargas etc.

Paralelamente, tinha também amigos e bom conhecimento na FAB, principalmente no setor “ROTA Rio-Manaus”. Essa rota, na verdade, era um departamento que tinha como finalidade “semear” campos de pouso entre aquelas cidades, única ponte aérea para os Estados Unidos.

Em vista dessas circunstancias, obtive, em 1959, uma concessão especial da F.B.C. quando o seu presidente, Dr. Retto, cedeu-me o pequeno avião Cessna 170-PP-BULL para uma viagem ao Xingu, como e quando eu bem desejasse.

O vôo de aproximadamente 2h40min foi pilotado pelo amigo “Chico Doido” (Francisco Milhomem). Por medida de segurança, o vôo era sempre feito em cima de algum rio. Primeiro, voamos sobre o rio Sete de Setembro. Depois, foi a vez do Kuluene e por último o Xingu.

Saímos de Xavantina e aterramos na confluência do rio Suiá-Missu com o Xingu, lugar conhecido como Diauarum (onça preta na língua dos índios). Posto da FBC há muito tempo abandonado, mas com boa pista de pouso.

Marquei com o Chico o dia exato da volta: 1 mês e meio depois. Daquele posto, a civilização mais próxima distava alguma centenas de quilômetros – o campo da FAB no rio Kuluene (Campo do Jacaré).

A carga levada estava limitada ao meu peso (75kg), gasolina (120kg), motor de popa (18kg), uma panela de pressão e sacarina, em vez de açúcar, devido o peso. Quanto à comida, a carga estava bem limitada (pequena quantidade de farinha, sal e alho), sendo caça e pesca a alimentação básica. Nessa temporada há muito ovo de tracajá.

O motor, velho expedicionário de muitas viagens, um Arquimedes de 2 ½ HP, simples e robusto, praticamente nunca enguiçava, consumindo menos de 1 litro por hora.

Do ponto de vista de satisfação pessoal, estava “rico”. Dispunha de tempo e gasolina à vontade e uma natureza exuberante e virgem pela frente, só para mim... que egoísmo!!! Nada programado. Só andar à toa, caçando e pescando (religiosamente só para meu sustento).

Desci o Xingu sozinho, passei pelas aldeias jurunas, subi o rio Manitsauá-Missu até o seu afluente Arraias, em cuja confluência havia, e ainda há, uma aldeia kajabi. Lá encontrei o adolescente Pionim (quase “cria” do Orlando Villas Boas). Muito vivo, simpático, meu conhecido do tempo da expedição do centro Geográfico (1958), quando convivemos por quase um ano. Convidei-o para ‘vagabundear’ umas semanas. De pronto, aceitou.

Subimos o Arraias por mais duas semanas, até ele ficar bem raso e o motor não conseguir mais. Mata seca, águas límpidas, lenha farta, muita caça e pesca e onças esturrando, mosquitos zero. Eu as imitava esturrando até elas se aproximarem bem. Aves piando, diversos tipos de macacos que nos visitavam quase diariamente. Desde jovem, fui um razoável imitador de bichos. Estávamos na própria sucursal do paraíso.

Após algumas semanas, voltamos para a aldeia. Pionim já em casa, ficou. Continuei só Manitsauá-Missu abaixo.

Na aldeia dos jurunas, no Xingu, não sei por que, resolvi visitar os suiás. Já sabia o “endereço”. Explico adiante.

Os jurunas se entusiasmaram com a idéia e dois deles resolveram ir comigo. Foram, porém, levando suas mulheres. Juruna não larga mulher para nada. Egoístas.

Mais ou menos nos meses de maio e junho daquele ano (1959), os irmãos Villas Boas (Orlando e Cláudio) contataram os índios Suiás, outrora temidos, há décadas arredios e sumidos. Nesse contato Orlando tirou várias fotografias, cujos rolos de filmes foram a mim endereçados no Rio de Janeiro com uma cartinha (que tenho até hoje) pedindo para revelar o filme “em segredo” e mandar de volta os negativos. Nessa carta me foi revelada a localização da aldeia suiá.

Nessa empreitada, foi usada a interferência dos jurunas que naquela época estavam se aproximando dos suiás, depois de décadas de animosidades, com mortes e seqüestros de mulheres e crianças. A razão da aproximação era o fato de os kajabis, antigos caçadores de cabeças, estarem se deslocando da bacia do rio Teles Pires para a do Manitsauá-Missu, causando certa apreensão. Assim, uma aliança com os suiás era medida inteligente do ponto de vista estratégico.

Parti Xingu acima com os dois casais de jurunas. Passei pelo Diauarum e subi por uns dois dias o rio Suiá-Missu.

Na confluência do rio Contissi-Missu há uma pequena ilha onde estavam acampadas umas três ou quatro famílias de Suiás.

Na época da seca (maio/setembro) as águas baixam. Tudo seco, sem mosquito e fartura de peixe. Os índios aproveitam essa bonança e se espalham pelo paraíso em pequenos grupos.

Nos apresentamos. Por sorte, os dois jurunas, depois de conversarem com uma velha suiá, concluíram que eram parentes. Ela se lembrava um pouco da língua juruna, pois fora roubada quando criança. Muitas perguntas sobre parentes vivos ou mortos. Choraram bastante. Foi uma cena comovente. Aí, os suiás disseram que estavam muito brabos com os caraíbas (brancos), pois deixaram feitiço na aldeia. Com gestos e mímicas deram a entender claramente: dor de cabeça, dor no corpo, tosse, febre etc. Era gripe.

Falei que tinha feitiço contra aquilo tudo (penicilina e xarope para tosse). Eu ia de qualquer maneira à aldeia. Os jurunas, com medo, não foram. Ficaram.

Como as águas estavam muito baixas, no auge da seca, não pude viajar de motor. Parti com mais dois suiás numa canoa de casca de jatobá, que calava uns três dedos na água. Remamos o resto da tarde e quase a noite toda. Água rasa e cristalina. Havia uma infinidade de peixes. Era comum empurrarmos a canoa. Fiquei só de camisa. O banco e a posição muito incômodos.

Muito tarde da noite chegamos então a um barranco, porto da aldeia, com o corpo todo “quebrado”. Estava completamente inocente. Os meus acompanhantes começaram a dar gritos de chegada sendo respondidos pelos outros da aldeia. Minha chegada fora anunciada. Minutos depois, chegaram três suiás armados com borduna, arco e muitas flechas. Esse armamento sugeria algo de muito anormal. Ninguém anda armado assim a toa. Chegaram gritando, gesticulando e tremendo muito. Beiço de pau tremendo é muito esquisito. Momentos inesquecíveis de medo. Só, à noite e cercado por um bando de aparência alucinada e muito nervosos.Meu futuro imediato não era nada promissor.

Na minha cabeça, a mil naquele momento, surgiu a seguinte indagação. Quem me mandou vir aqui? Que saudade de Copacabana! Que dor de corno!!! Todos, nervosos, um por um, se dirigiram a mim tremendo batendo várias vezes no meu ombro, com gestos e mímica me disseram claramente a mesma coisa que os outros suiás da ilha haviam me dito: a gripe.

Fiz um grande esforço para me manter com aparência serena. Mesmo apavorado, eu não deixava de falar repetidamente e com veemência, que aquilo era coisa do Orlando e não minha. Estou chegando agora, pôrra!

É claro que não entenderam nada. Torci para usarem a borduna, pois a pancada forte não se sente. Já me achava morto. Flecha, até matar, deve ser muito dolorido.

Porque me matar? Na cultura xinguana, o feiticeiro só faz feitiço enquanto vivo. Morreu, acaba tudo.

Por outro lado, eles deviam pensar. Como é que uma pessoa sozinha vai à aldeia de outro povo. No inicio de uma aproximação, época em que ainda não estão definidas as verdadeiras intenções de cada grupo. De paz ou espionar para beligerâncias futuras.

Na cultura dos povos primitivos não existe maluco. Deve ser mesmo um grande feiticeiro. Logo, pau nele. Foram chegando mais e mais índios em pequenos grupos. Todos armados e se dirigiram à mim da mesma forma que os outros.

Os já “apresentados” se reuniram à parte, e continuaram discutindo por gestos e tremiam. Eu achei que o tremor era por medo de me matar, pois seria uma declaração de guerra com o meu povo, que eles pensavam ser mais uma longínqua tribo. Neste momento, chegou o capitão (chefe) suiá (foto). Fez um discurso maior do que os dos outros. Por último, chegou seu filho Kuiuci (foto), com 18 anos, sem botoque nos lábios. Futuro chefe dos suiás. Este fez um discurso ainda maior. Muito “malandramente” encostou a sua mão no meu coração para ver se eu estava com medo.

O capitão (Chefe indígena)
O jovem Kuiuci

A essa altura, com um bom tempo já passado (talvez uns 40 minutos) e tendo sido envolvido por uma calma e resignação, meu coração já estava na marcha lenta, indicando nenhum medo. Mentiroso!

Com o Kuiuci o nervosismo do grupo terminou como por um encanto.

Ainda do alto do barranco, só de camisa, pedi a alguém que apanhasse o meu embornal na canoa. Tudo só por mímica. No embornal, estava o meu revolver embrulhado numa meia, indicando a minha total despreocupação, de início. A seguir, Kuiuci mandou que fosse andando em direção ao local onde o pessoal dos Villas Boas armaram as suas redes. Para andar peguei a lanterna e a acendi. Foi uma gritaria geral. Apaguei-a e peguei a mão do Kuiuci junto com a minha e voltei a acender a lanterna com o facho apontado para o alto. A calmaria voltou.

Naquele local, Kuiuci me mandou armar a rede. Respondi que não tinha. Só durmo no chão. Trouxeram uma. Pedi a lenha e acendi uma fogueira com bastante claridade. Para acendê-la, com fósforo, fiz gestos teatrais. O fósforo ainda era uma coisa inexplicável e, por isso mesmo, feitiço, aliás, de grande utilidade.

Em seguida, pedi a alguém para apanhar água numa lata. Um suiá se ofereceu e foi correndo com a lanterna. Com este ato, deve ter marcado pontos por sua coragem.

Depois de acomodado, sentado na rede, com bastante iluminação, os suiás me examinaram totalmente, tocando na minha barba, pés, mãos etc. Na oportunidade, trouxeram biju com peixe.

Como bom sinal, as mulheres também apareceram, e dentre elas a mulher do Kuiuci, que o chamava de “Kuiú”.

Esses índios não conheciam metal, ou era pau ou pedra. possuíam dois machados de ferro roubados da expedição do famoso cientista e explorador alemão, Von Den Steinen, em 1886. Em seu clássico livro “Brasil Central” registrou o roubo, mas fez que não viu.

Registre-se. Não me deixaram ir à aldeia. Kuiuci, ainda naquela noite, mandou que eu atirasse com a espingarda. Com medo de causar mais tumulto, neguei. Mas insistiu tanto que dei 2 tiros numa árvore. Nesse momento Kuiuci começou a rir, riu muito. Pela mímica e por certas palavras chave entendi que a finalidade era assustar os outros lá da aldeia que não sabiam a razão dos tiros. Deveriam estar apavorados. Que espírito de gozação! Kuiuci é, de fato, diferente.

Dormiram comigo dois homens bem armados. Kuiuci se justificou: os homens era para me proteger dos Txukarramães que os atacavam com bordunas. Mentira. Eles ficaram para me vigiar. Grande diplomata, o Kuiuci!! À noite eu poderia me transformar em onça ou coisa parecida.

Ele me pareceu muito inteligente não só pelo fato de não usar botoque, contrariando toda uma cultura, como por outras atitudes, como a gozação, a diplomacia etc. Merece mesmo ser o chefe e é até hoje.

No outro dia, dei injeção penicilina a quem tinha febre. Aos que tinham tosse, dei “populisticamente” o xarope, me servindo para tanto da tampinha de vidro como medida.

Sabia que, num grupo, algumas pessoas iriam se curar de qualquer maneira, o que seria creditado ao meu “feitiço”. Quanto aos não curados, era porque o feitiço que tinham era maior. O restinho do xarope que sobrou ficou com o pai do Kuiuci. No outro dia, como ninguém teve nada, ele me pediu que desse o xarope a ele. Conclui, o poder estava também em mim.

Após três dias fui embora. O dia de pegar o avião de volta estava próximo. Desci o Contissi-Missu na mesma canoa, agora com o Kuiuci e outro suiá.

Na viagem, Kuiuci deu um show de flecha. Matou alguns pequenos peixes em movimento. Às vezes errava.

Chegamos à ilha onde ficara a minha canoa. Despedimo-nos. Ai, eu e os dois casais de jurunas descemos o Suiá-Missu.

Cheguei a Diauarum um dia antes do avião, que agora chegou pilotado por outro piloto da FBC – nome .......... Voltei a Xavantina e depois ao Rio de Janeiro.

UM ANO APÓS

No outro ano, na mesma época, voltei ao Xingu numa outra canoa de minha propriedade, que ficava no campo da FAB no rio Kuluene – Jacaré.

Passando pelo Diauarum encontrei Cláudio Villas Boas, Raoni (Txukarramãe e meu velho conhecido) e Kuiuci, dentre outros. Como a língua destes índios são muito parecidas pedi ao Raoni que pedisse ao Kuiuci para falar sobre a minha visita na aldeia no ano passado.

Disse que tiveram medo de mim, como eu pensava. Por estar só, devendo por isso ser um grande feiticeiro.

Quanto aos toques em mim e muita falação, esclareceu o Cláudio que aquilo faz parte da “educação”. Eles tocam em você perguntando: Qual o seu nome? O da sua mulher? Os dos seus filhos? Na sua aldeia tem muito peixe? Muita taquara para flecha etc?

Quanto mais extensa a “falação”, maior é o status da pessoa. Daí o maior tamanho dos discursos do capitão e do Kuiuci.

Kuiuci, após a morte dopai, continua até hoje à frente dos suiás. Pretendo estar com ele, tão logo possa. Agora em Setembro de 2007 na FUNAI (em Brasília) ou no Xingu, quando gravarei entrevista para colher suas impressões após passados 48 anos.

Não sei porque só agora, passados tanto tempo, resolvi fazer este despretensioso registro e fatos ocorridos. Talvez motivado pela saudade daqueles tempos como também por me sentir quase no fim da “picada”. Quase!!

EM RECENTE VIAGEM AO XINGU (outubro de 2007), SERGIO VAHIA FEZ ALGUNS REGISTROS FOTOGRÁFICOS DOS SUIAS:

Sergio Vahia
Kuiuci hoje.



Indios olhando o álbum de fotografias dado como presente por Sergio.

sexta-feira, novembro 02, 2007

CONVITE No próximo Carnaval (2008), estaremos descendo o rio Meia-Ponte em canoa a remo até o municipio de Aloândia. A saída será na ponte do município de Pontalina. Quero aproveitar o momento para convidar todos aqueles que queiram participar da aventura, bastando que os interessados tenham canoa movida a remo (não serão aceitas embarcações com propulsão a motor). Para mais detalhes, entrem em contato conosco - hqpoint@gmail.com PC Castilho

EXPEDIÇÃO XAVANTINA-CACHIMBO

Começo aqui uma série de artigos escritos por Sergio Vahia, que na verdade são relatos de suas aventuras em um Mato Grosso ainda virgem.
Enganam-se aqueles que pensam que tudo era festa, apesar de gostar de tudo aquilo, a vida não era fácil. As dificuldades existiam mas elas pareciam dar prazer a esse grande e incansável amigo.
O primeiro artigo a ser postado é o "Expedição XavantinaCachimbo".

EXPEDIÇÃO XAVANTINA – CACHIMBO
Fundação Brasil Central
1965-67
por Sergio Vahia de Abreu


Com a revolução militar de 1964, é natural que os postos e administração do país fossem ocupados por militares.

Antes de mais nada é imprescindível que se saiba que os laços existentes entre a Fundação Brasil Central (FBC) e a FAB (através de seu Correio Aéreo Nacional – (CAN)) eram antigos e estreitos, mercê de uma coexistência baseada em duas décadas de patrióticos interesses, vividos por ambas as partes, em intenso clima de pioneirismo épico e de sacrifícios.


Dos dois lados viveram heróis, hoje anônimos e esquecidos. Da Fundação pilotos, mateiros, sertanistas, médicos, radiotelegrafistas, operadores e lubrificadores de máquinas, braçais e ainda funcionários lotados por anos em situações de sacrifício e precariedade.

Por terra a FBC entrou com o trabalhos pesados de exploração, picadas, pistas de pouso, acampamentos, bases de apoios e etc. Tudo sujeito às chuvas, ás secas e às inúmeras pragas da mata.


O CAN, pelo ar, levando suprimentos em extensas regiões de mata sem apoio. Zonas ainda desconhecidas. Com bom ou mal tempo. Com razoáveis riscos seus pilotos inauguraram inúmeras e precárias pistas, curtas e duvidosas, construídas às pressas sem nenhuma máquina e mão de obra não habilitada. Formigueiros não detectados eram um perigo.

Foi assim, aos poucos, se concretizando a rota Rio-Manaus que viabilizou os vôos para a América Central e do Norte, esta através de Miami. Aos poucos foram criados campos de Aragarças, Xavantina, Xingu, Cachimbo e Jacareacanga. Estes campos já salvaram inúmeras aeronaves em situação de emergência.


Assim, nada mais natural que os militares em 1964 colocassem na Presidência da FBC alguém da FAB.

Foi, então, indicado o Coronel Aviador Aluyzio Lontra Neto (muito voado no Brasil Central) e como seu vice, no caso, um secretário geral, foi indicado um senhor Edmundo Vanderlei Chaves, pessoa que além de ter muitas ligações de trabalho e política com a FAB, era nascido e criado na região. Indicação acertada.


Por coincidência, eu era muito conhecido e respeitado por aquelas duas pessoas devido a minha vivência, não só com o elemento humano nativo, como também pelo meu conhecimento da região adquirido em duas décadas de constantes incursões que fiz no Xingu e na região dos índios Xavantes. Além disso, meu pai Dr. Darcilio Vahia de Abreu,- fora médico da expedição Roncador-Xingu e da Fundação Brasil Central nos seus últimos oito anos de vida (1943-50), reconhecimento que herdei, e de que muito me valeu.


Fiz parte ativamente da expedição do centro Geográfico do Brasil da FBC por quase um ano, que dentre outras atividades marcou o Centro Geográfico do Brasil (1958).

Fiz em 1959 o segundo contato sozinho com os então temidos índios beiços de pau Suiás, quando passei no Xingu um mês e meio sem qualquer companhia. Naquela época só havia “civilização” no Campo do Jacaré (com três homens) e no Posto Capitão Vasconcelos (hoje Campo Leonardo Villas Boas).


Em 1964 fui convidado para fazer parte da administração das FBC. Recusei. Pois sabia que iria fatalmente me perder na “docce vitta” de Brasília ou nos meandros da burocracia. Isso não era do meu feitio.


No ano seguinte, porém, fui chamado para fazer parte da expedição Xavantina-Cachimbo – recente criação da nova administração da FBC – cuja finalidade era abrir uma rodovia de Xavantina rumo Cachimbo e Santarém. Primeiro seguindo o divisor de águas existente entre o Mortes/Araguaia e o Xingu, devendo atravessar este ultimo a uns 700 km após Xavantina. Isto pela distância, não macularia o Parque Indígena do Xingu. Naquela época não existia ainda o termo “Transamazônica”.


Essa estrada ligaria aquela extensa região central, completamente virgem e ilhada, ao resto do país. Era uma clara semente promissora de progresso. Um número infinito de empreendimentos rurais seria criado. Vilas e cidades e floresceriam. A travessia do rio Xingu deveria ser feita na Cachoeira Von Martiuns, onde o rio é raso e pedregoso e firme. Críamos nós apropriada para suportar a base de uma ponte futura e de fácil construção.


O traçado da estrada foi “tecnicamente” combinado pelos novos administradores certamente entre alegres rodadas de whisky nas noites de Brasília.

A Fundação contava para tal empreitada maquinário velho e precário (caminhões, tratores, patrolas, jeeps, fábricas de manilhas etc), sucata de várias atividades federais abandonadas.


Quanto ao pessoal, seria utilizado os antigos funcionários da Fundação, além de pessoal regional a ser contratado. Os salários da época eram extremamente baixos. Tudo seria feito “a preço de banana”.

O trabalho da construção da estrada seriam feitos nos moldes de uma expedição.


Xavantina – KM 0 – então já era expressiva base da Fundação. Seria a fornecedora direta de tudo que fosse necessário. Como orientador de rumo e chefe das máquinas e dos outros grupos de trabalho ( extração de areia, de cascalho, de pedras, madeiras de lei para as pontes e pontilhões, fábricas de manilhas etc) foi indicado o funcionário Enzo Pinzano – o Paulista – antigo elemento da expedição Roncador-Xingu (1943). Com larga experiência de tudo e grande capacidade de trabalho, porém extremamente problemático, por motivos íntimos, funcionais e políticos.


A parte mais “romântica” da expedição seria a “picada” – eixo da futura estrada. O território era na época completamente desconhecido, só habitado pelos arredios Xavantes. Para a chefia da picada foram indicados os conhecidos sertanistas Orlando Viillas Boas, Cláudio Villas Boas e Francisco Meireles. Para a sub-chefia fui convidado.


Aqueles 3 “chefes” só aceitaram a incumbência porque não tinham como negar, pois o assunto fora muito ventilado na imprensa. Eles achavam que o trabalho seria muito inferior aos seus “gabaritos”. De inicio seria um serviço de pouco sacrifício devido á proximidade de Xavantina.

Fui requisitado ao Banco Central, onde era funcionário, pelo Ministro do Interior Cordeiro de Farias, que se tornou o grande entusiasta da ideia da estrada. Antes de me dirigir ao interior, resolvi usar os meus conhecimentos de ex-aluno do Colégio Militar do Rio de Janeiro. Muitos dos meus antigos colegas eram comandantes ou quase de batalhões e regimentos da Vila Militar do Rio de Janeiro. Para lá me dirigi e procurei alguns deles e expus a ideia da expedição e da pobreza da Fundação.


Assim, consegui donativos que lotaram dois aviões DC-3 (fardas, botinas, perneiras, mantas, chapéus, cantis, panelas, lonas etc).

Então, em maio de 1965, a simpática mata alta e limpa do Rio Areões, à frente do rio das Mortes (a mais ou menos 20km de Xavantina) foi preparado uma grande comemoração – “a partida da expedição” – o que foi amplamente divulgada pela imprensa. Teve de tudo para deixar os “urbanos” encantados. Mata, rio, índios semi-nus, fogueiras e missa campal. Finalizou com o desfile da tropa – nossos trabalhadores uniformizados com roupas do exercito.


Além do alto escalão do Ministério do Interior, tendo á frente o então mais cotado futuro presidente da República, o General Cordeiro de farias – havia altos figurões da política da época e muita imprensa.

As comemorações se estenderam até a noite. Inúmeras fogueiras, churrascos, caipirinhas, índios e etc.


Ultrapassada a ressaca das comemorações, foi dada a efetiva partida da expedição. À frente de tudo estava Enzo Pizzano, que tudo orientava. Fazia inúmeros vôos na região para escolher o melhor caminho para a estrada. Nesses vôos eu estava sempre presente. Vôos altos e rasantes para melhor identificar o terreno. O avião da Fundação – um Cesnna 170 prefixo BUL – era adequado, pequeno e ágil. Era a principal ferramenta da nossa empreitada. Meu serviço mesmo era a picada. Os três chefes ficaram lá uns dias e foram embora. Não fizeram falta.

De inicio, dava pra me dedicar à picada e aos domingos procurar me inteirar dos outros serviços e dos vôos.


O trabalho na picada era duro. Acordávamos com o escuro para o café com farofa de sobras do dia anterior. Se iniciando logo os trabalhos até pouco antes de escurecer. As roupas nunca secavam. A noite: um banho no córrego, uma cachaça, janta, fogueira e rede. Lavar roupa só aos domingos. NO cerrado, não raro almoçávamos no sol direto. O almoço vinha de burro.

Logo atrás da picada vinha as máquinas pesadas. Primeiros os tratores depois as patrolas. As turmas de extração já estavam esparramadas naquele mundo de sol. Cada grupo tinha o seu acampamento, a sua cozinha e o seu encarregado.


Tudo ia muito bem de inicio em ambiente de puro contentamento. O cerrado permitia um bom avanço. A cada água encontrada, mudávamos de acampamento. Na seca as máquinas trabalhavam em dois períodos, quase dia e noite.


OS PAULISTAS

Logo nos primeiros meses surgiu uma ajuda extra muito bem vinda, o”grupo Ometo” de São Paulo (a maior família produtora de açúcar do mundo com 17 usinas) proprietária da fazenda Suiá-Missu, propriedade de grandíssimas proporções, que ficava bem no traçado da nossa estrada. A sua sede ficava próxima da cidade de São Feliz do Araguaia (Ilha do Bananal). Nela havia muitas dezenas de milhares de cabeças de gado que se escoavam por via fluvial.

Com a realização da estrada o seu escoamento seria por terra, muitíssimo mais barato. Além de unir aquela região ao resto do país. Assim, o senhor Orlando Ometo, então líder de visão do grupo, após se entender com a Fundação, resolveu formar um grupo próprio de trabalho que iria nos ajudar. O grupo era formado por máquinas pesadas e novas e pessoal muito bem qualificado. Era aproximadamente uns quarenta ou cinqüenta homens. Foi um grupo isolado com chefia própria – no caso o capaz senhor José Gonçalves – o Zé do Pito. O seu hábito de fumar cachimbo lhe diferenciava de outros José Gonçalves. Tinham cozinha de primeira, e cobertura aérea constante, feita pela então pequena TAM, chefiada pelo piloto agora o famoso Comandante Rolin. A TAM fora criada só para atender o interesse do grupo. Tinham aproximadamente seis ou oito Cesnnas 180.


Esse grupo de trabalho era praticamente independente, apenas seguiam o rumo dado pela expedição. Eles dividiam conosco certos trabalhos. A qualidade da nossa retaguarda foi assim muito melhorada.

Entretanto, decorridos dois/três meses quando avançamos uns 80 quilômetros, o chefe Pizzano numa atitude até hoje sem explicação resolveu abandonar tudo. Creio que por questões políticas e filosóficas. Poucos anos antes, fôra da Revolução de “Direita” do major aviador Veloso – A Revolução de Aragarças. Depois foi capataz de uma fazenda de João Goulart, na região de Bananal (deve, por isso, ter dado uma guinada para a esquerda). E agora, se via subordinado a um militar de uma revolução de “direita”.

Pensou, possivelmente, que os trabalhos fossem parar por falta de um pronto substituto, que deveria ser um técnico em estrada e que conhecesse bem o elemento humano. Muito difícil de encontrar alguém de pronto. A paralisação seria imediata.

Fui chamado para substituí-lo. Excitei pois não era nem topógrafo.


Mas como eu tinha, sem querer, me assenhoriado de praticamente tudo, resolvi “encarar” a situação. De inicio tínhamos só um topógrafo muito bom (Noel) e mais um outro formado por correspondência (nunca vira um teodolito). Este, poucos meses após se suicidou. Tempos depois veio outro muito bom, o gaúcho Viana. Passei a comandar tudo, principalmente o rumo da estrada que era estimada através de inúmeros vôos quando analisávamos tudo. A direção era passada para o topógrafo da ponta da picada. Passei a conhecer bem a região.

Mas o que eu mais gostava era da picada.

À proporção que Xavantina se distanciava e o cerrado se engrossava, mais difícil ficavam os trabalhos. O abastecimento da frente ficava prejudicado. Mantínhamos sempre dois caçadores para cobrir a falta de carne. Havia fartura de veados campeiros. As verbas da Fundação para nós eram bem magras. Fazer uma picada em território completamente desconhecido é uma atividade extremamente gratificante e principalmente excitante. Sempre paira no ar uma constante e agradável curiosidade. O que está pela frente? Uma mata simpática e limpa? Um brejo? Um córrego com peixes? Uma lagoa com Traíras?

Era a alegria do “por vir” e do “desbravar”. Mas existia o outro lado da moeda. A dureza do trabalho braçal, a completa falta de conforto, a precariedade da alimentação. E as pragas: mosquitos, abelhas, marimbondos, mutucas, carrapatos, que se entremeavam no seu trabalho constante de apurrinhação. Presente, também, veados campeiros, emas, seriemas, lobos guará e nas matas os porcos.


Uma vez distanciados das máquinas, onde só havia uma rudimentar estrada, o suprimento por tropas de burros ia ficando irregular, principalmente nas chuvas.

O FACÍNORA JOÃO GRILO

Eu me desdobrava entre os serviços da picada e a exploração aérea, entretanto, era imprescindível que de tempos em tempos (mais ou menos 10 dias) revisar todos os diversos grupos de trabalho, principalmente os construtores das inúmeras pontes e pontilhões que eram constituídos de cabeceiras (fundações ou base de concreto com grandes pedras) e do madeirame em seus vãos. Tinha ainda que me entender com o paulistas. Isso tudo numa extensão que, no final, chegou a mais de 400 quilômetros da ponta da picada até Xavantina, que eu fazia em um jeep Toyota sem freio e sem arranque.

Fizemos, também, inúmeras pistas de pouso sempre o mais perto da frente. A última já na zona da mata alta (Campo da Matinha), era o mais perigoso. Pista curta em aclive, piso de areão e cabeceiras com árvores altas.

Tudo ficava a meu critério, tantos os casos pessoais como os trabalhos “técnicos”. As máquinas dos paulistas vinham atrás das nossas, melhorando tudo já que tinham melhor maquinário e gente bem mais capaz. Ampliavam os aterros e os valões para o escoamento das águas nas estações das chuvas.


Naquelas vistorias eu fazia tudo para passar no acampamento dos paulistas na hora do jantar onde a mesa era farta em contraste com a nossa cujo prato de força era carne de veado campeiro (sequíssima). Certa feita, chegando à noitinha naquele acampamento – situado num lugar chamado até hoje de Água Boa -, o seu chefe – Zé do Pito – me fez uma assustadora reclamação. O seu acampamento era frequentemente “invadido” por um famoso facínora regional – João Grilo – ex-sargento expulso da policia militar do Mato Grosso.

Chegava sempre à noite atirando e dando a todos as mais inusitadas ordens. Todos permaneciam apavorados. Por diversas vezes fez o cozinheiro acordar a altas horas da noite para fazer jantar para ele. Atacou diversos outros trabalhadores.

Por ultimo, botou para correr nú pelo cerrado, debaixo de tiros, quando se banhava em um córrego, o agora o famoso e falecido Comandante Rolin – praticamente dono da atual TAM. Na época era apenas o piloto chefe da pequena TAM.


Ao escutar tal relato declarei textualmente: vocês paulistas são uns bundas-mole! Como é que um homem sozinho bota pra se acovardar vocês que são uns quarenta homens. Mata esse cara! Pela frente, pelas costas, mas mata. Dou ordem até por escrito se quiserem. Se isso acontecer no nosso acampamento “é festa”. O cara morre na hora. Logo após fazer tal declaração, já noite, começamos a escutar um tiroteio. Era o tal do João Grilo chegando para mais uma humilhação. Chegou com o 38 fumegando, chapéu de abas largas, vistoso lenço no pescoço, guaiaca, cartucheira, faca, bombacha e etc. Estranho e assustador.

Eu estava no grande rancho de teto de palha palha (refeitório) do grupo junto a outros 30 paulistas, todos recém-banhados e limpos. Eu, cabeludo, barbudo, empoeirado e rasgado, quieto em um dos cantos.

O tipo se dirigiu a mim apontando o 38 ameaçadoramente e disse:
Ei, você aí, barbudo! Sabe dançar?

Respondi:
Não.

Mas vai dançar, disse ele mais ameaçador ainda, chegando mais próximo de mim o 38.
Eu repeti com humildade:

Infelizmente não sei dançar não, senhor.

(Cá comigo, eu não ia dançar nunquinha na frente de tanta gente.)

Ele revigorou a ordem: Mas vai dançar. E se aproximou mais ainda de mim com o 38 em riste engatilhado.


Foi ai que me deu a louca. Em um gesto de torção inesperado e brusco tomei o 38 de suas mãos. Pipoquei o 38 nele. Felizmente todas as balas já haviam sido usadas. No mesmo exato instante, tentei agredi-lo com a arma mas ele correu para o mato escuro, que ficava a alguns poucos metros do rancho. Nesse momento eu disse:

Ele deve voltar. Rápido, me arrumem munição. Agora o 38 é minha presa de guerra. E acrescentei: Carioca é assim, bobeou dançou.

Fomos então jantar. Eu cheio de “banca”. Em seguida surgiu na minha frente um tratorista de bermuda que tinha acabado de tomar banho e que me perguntou:

O senhor me conhece?

Respondi:
Você é um tratorista.

Quando para o meu espanto ele disse, “Eu sou o João Grilo”.

Aquilo era uma brincadeira de uma meia dúzia de pessoas para gozar o resto. Pura falta de assunto e mau gosto. Ele antes de se empregar no grupo Ometo fazia parte de um circo mambembe. Nunca se esquecera de suas artes circenses. Era um artista, enganava muitíssimo bem. Mas, com a humilhação que o Comandante Rolin sofreu, veio logo uma ordem expressa de São Paulo para terminar definitivamente com aquela brincadeira.

Fora eu a última vitima do “facínora” João Grilo. Mas o tiro saiu pela culatra.

QUASE TRAGÉDIA

No final da seca é comum surgir, de repente, ventos fortíssimos, porém de curta duração. Mas provocam derrubadas violentas de árvores na mata. Era comum também, em quase todo barracão dos diversos grupos de trabalho haver trabalhadores acamados por vários motivos: malária, dor de dente, gripe, etc. No final de 1966 caiu de dia uma grande árvore em um de nossos barracões, estraçalhando-o completamente. Por sorte não havia nenhum doente.

SURRÕES

Principalmente nas chuvas era necessário lançar de avião suprimentos para a turma da ponta da picada, pois de burro estava ficando muito problemático. Tínhamos um outro pequeno avião de tela, ágil e de baixa velocidade, adequado portanto.


O suprimento era embalado em dois sacos (um dentro do outro) de couro cru e costurados à mão. Surrões. Carregava em média 15 quilos. O pessoal da picada, quando eu não estava, liderados pelos topógrafos Noel e Viana fazia previamente uma fogueira com bastante fumaça para ser vista há muitos quilômetros. A fumaça orientava os pilotos para o local dos lançamentos. Os surrões eram lançados à baixa velocidade e à baixa altitude. Fazer círculos concêntricos era necessário para localizar melhor o ponto. Neste momento critico qualquer “pipoco” no motor poderia ocasionar de imediato sérios problemas. Um momento perigoso.

Sempre que eu podia, quando não estava na frente, eu gostava de fazer os lançamentos. O piloto me dava o momento certo. Na média cinco surrões por viagem. O suprimento era assim constituídos: arroz, feijão, farinha. Açúcar e café, toucinho, sal, cebola e alho, carne ZERO e mais algumas encomendas.

MAPA ASSUSTADOR

Num desses vôos, quando eu era o “lançador”, no seu momento mais critico – a hora do lançamento – como já disse à baixa altitude, à baixa velocidade e voando em círculos de repente!!!!! Com grande estardalhaço e barulho “entrou” pelo janelão lateral (sempre aberto) uma grande coisa branca estalando ruidosamente,parecendo vir quebrando tudo. Pensei: morri!

Ultrapassado aqueles segundos iniciais vimos que o avião continuava sereno e inteiro.
O que houve?

Acabando de fazer o circulo, vimos na nossa lateral uma grande coisa branca “baloiçando” nos céus refletindo a sua brancura.

Era um grande mapa de papel meio rígido que estava enrolado no espaço do fim do compartimento de cargas do avião.

Com o grande janelão aberto, ventava muito no interior da aeronave. Foi o movimento de ar mais forte e anormal que fez o mapa desenrolar e ser cuspido para fora.

A nossa impressão foi contrária. Nos pareceu que alguma coisa grande e branca entrara e não saíra do avião. Que susto!!!!


MARIMBONDO MANGANGÁ

Em outro vôo, em uma decolagem com o Cesnna 170 – no campo da mata – de pista curta, arenosa, com ligeiro aclive, cabeceiras com árvores altas – no momento crítico e exato que o piloto Chico Doido (Francisco Milhomen) e eu estávamos ultrapassando os galhos mais altos da cabeceira surgiu um grande e ameaçador marimbondo mangangá no pára-brisa do avião chamando a atenção do piloto perigosamente em um momento que era necessária extrema atenção para tomada de qualquer procedimento imediato.

Naquele instante, eu, em um gesto automático, brusco e imediato, “embrulhei” o mangangá com o meu chapéu de pano mole, esmagando-o no pára-brisas, acabando de imediato com o motivo do desvio de atenção do piloto. Foi um movimento de risco. Eu poderia errar o “bote” e piorar a situação, pois o bicho é reconhecidamente bravo.

VOO PERIGOSO

Certo dia, quando nossa estrada já estava muito adentro da mata alta e com aproximadamente uns 400 quilômetros, decolamos com o Cesnna 170 de Xavantina para o nosso ultimo campo, o da Mata.

Saímos um pouco tarde, pois o piloto, Comandante Portela fez tudo para pernoitar em Xavantina, onde tinha mais mordomias. Mas eu estava querendo levar um motor de arranque para um trator para que naquela noite mesmo voltasse a trabalhar.

A nossa estrada fazia uma longa curva. Os vôos eram feitos sempre em cima dela, avistando-se o vermelhão do barro da pista.


Como já disse, saímos um pouco tarde. Resolvi, para compensar o atraso, fazer um vôo direto, sem ver a estrada. Dava tempo perfeitamente. Voamos o tempo todo sem ver o vermelhão, porém já sobre a mata, e a uns 15 minutos antes da chegada prevista, uma grande nuvem escureceu o sol, que já ia baixo.

Isso modificou completamente a fisionomia da região. Com a estrada na mata, o vermelhão só é avistado se você estiver bem na sua perpendicular.

Não se avistava nada. O tempo estava se esgotando. Ia logo escurecer. Voltar? Nem pensar. Nem lá nem cá. Já estava pensando em aterrar no paliteiro. Minutos de grande apreensão.

Até que então cruzamos com a estrada com seu vermelhão. O campo ficava logo há mais alguns minutos. Fim do susto. Aterramos com pouco margem de tempo claro. Foi um vôo extremamente laxativo.

PAU NA COXA

Num certo dia, para otimizar a transferência da chefia da expedição (assunto que tratarei mais à frente) em um jeep Toyota, partimos de Xavantina para São Felix. Eu, Enzo Pizzano (novo chefe) e o Tenente França, (possível novo chefe de Xavantina).

Nota: o Tenente França era tido publicamente como aquele militar que na Revolução Comunista de 1935 (Praia Vermelha) atirou e feriu o então Tenente Eduardo Gomes, que depois por décadas se transformou em um ícone político nacional - o Brigadeiro Eduardo Gomes.

Naquela viagem, de início, discuti muito seriamente com o meu (ex-professor) Enzo Pizzano. Ele não podia admitir, com a sua conhecida vaidade, que fosse corrigido pelo seu “ex-aluno” em certos pontos da estrada. E pior, um carioca contador de piadas, esculhambado (esteticamente), completamente despretencioso e que ainda pôde levar os trabalhos até onde chegaram. Mas foi tudo explicado e compreendido. Podemos voltar às boas. Após passarmos próximos ao campo da Mata havia uma árvore caída e obstruindo a estrada. Pulei do jeep com meu facão Colins de 18 polegadas e piquei toda a galhada. Acho que a árvore como vingança fez com que um pequeno galho seco e rígido atingisse e perfurasse a minha coxa direita e quebrar-se dentro. Um toco de uns quatro centímetros. Viajei até são Felix com o graveto encravado na perna.


Lá, em um posto médico da Fundação, fui atendido por uma enfermeira que, com um velho caco de lamina gilete retirou o graveto a frio. A assepsia foi feita com cachaça 29, a precessora da atual inteligente 51. Foi essa a segunda vez que cheguei a São Felix por terra. Eu havia estado lá dias antes.

Em meados de 1967, houve um desentendimento entre o nosso presidente e o secretário geral.

O “poder invisível” houve por bem exonera-los. Como novo presidente foi indicado o “Coronel da Revolução” Coronel Fabrício. Permaneci na chefia da expedição por mais algum tempo. Sem praticamente me conhecer, sem qualquer conversa ou aviso prévio, não obstante o flagrante êxito do meu trabalho, o Coronel me exonerou e recolocou na chefia Enzo Pizzano. Tomei conhecimento da minha exoneração na ponta da estrada pela “voz do povo”. A Fundação tinha uma cadeia de pequenas estações de rádio.

Custei a acreditar em tamanha grosseria e indelicadeza. Nunca em minha vida ficara tão indignado, não pela perda da chefia, mas com a pública e deprimente forma de ser destituído.

Foi uma agressão desnecessária e brutal.


Deveria ele próprio, o Coronel, conversar previamente comigo. Afinal eu não era nem moleque e nem joguete de ninguém.

Soube num dia que haveria “um almoço de posse” em Xavantina. Peguei o BUL velho de guerra, de tantas viagens e histórias e fui para o almoço sem ser convidado. Fui direto do trabalho, sujo, barbado, esfarrapado e armado com um 38. O almoço ocorreu na casa do Presidente, uma construção rústica e bonita à beira do Rio das Mortes, com uma bela vista. Cheguei logo no início, visivelmente indignidade e certamente transtornado. Disse coisas ao Presidente que ele nunca escutara na vida e pior, na frente de toda Xavantina. “Discursei” com muita veemência e agressividade. Ninguém ousou dizer qualquer coisa. Prometi naquele momento, voltar ao Rio e destituir o Presidente em três meses, (o que de fato aconteceu). Acho que minha opinião era muito respeitada pois sempre fui muito isento. Como eu já sabia que havia uma “ordem superior inexplicável” para parar a estrada, fiz um “acordo de cavaleiros” com o presidente. Pedi para permanecer na chefia por mais uns 20 dias. Ele concordou, talvez para evitar mais falação da minha parte, o que poderia redundar em um possível confronto mais sério. Ninguém sabia o “por quê” do meu pedido. Mandei para frente considerável carga de óleo diesel. Estávamos no final da estação da seca. Chovia um pouco.

UM PARENTESE

Pouco antes da saída do Secretário Geral Vanderlei, meu amigo particular, fiz com ele um vôo de reconhecimento na frente, muito próximo da fazenda Suiá-Missu quando descobri (eu já havia estado lá a pé) que havia lá um picadão de medição daquela fazenda que se dirigia em um rumo próximo à nossa ponta. Foi então que naquele vôo de reconhecimento o senhor Vanderlei me deixou sozinho em uma pequena pista da fazenda próxima àquele picadão. De lá andei um dia e pouco, levando somente facão e farinha, nem o 38 levei para não atrapalhar. No meio da caminhada comecei a escutar o ronco dos tratores, principalmente à noite. Dirigi-me rumo aquele ronco e cheguei ao nosso acampamento. Tinha descoberto um rumo viável para chegar às estradas internas da fazenda que ligavam a São Felix. Eu já sabia, não com muita certeza, da paralisação da estrada.


VOLTANDO À ÉPOCA DO MEU PEDIDO DE PERMANÊNCIA

Ordenei que a picada, com as máquinas logo atrás, rumassem para o picadão, seguindo o rumo do pique que tinha precariamente feito.

Em poucos dias as máquinas chegaram a estrada particular da fazenda.

São Felix do Araguaia, até então praticamente uma ilha, passou a se ligar a Xavantina e consequentemente ao resto da região.

Mas, para isso, tive que fazer uma modificação no rumo combinado da nossa estrada. Dei uma guinada de mais ou menos trinta graus a leste (à direita).

A nossa querida e sofrida estrada não ficaria mais um beco sem saída, o que certamente aconteceria por muitos anos. Ela só foi retomada mais de dez anos depois, se não me engano.

Na época ninguém soube explicar a razão das paralisações dos trabalhos de nossa estrada, que vinha tendo tão bons resultados e “a preço de banana”.

Muitos anos depois descobri. Havia entre os políticos e o Poder Invisível uma idéia que ela “mataria” a futura estrada Cuiabá-Santarém, que estava sendo ainda idealizada ou talvez recém-iniciada. Essa idéia provocou a paralisação da nossa estrada por uns dez anos, quando foram retomados os trabalhos como já disse.

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Fui devolvido ao Banco Central em fins de 1967. Três meses depois fui novamente requisitado diretamente pelo então Ministro do Interior o General Albuquerque Lima, que me empossou em seu gabinete. Interrogado por mim sobre a nossa estrada, ele nada respondeu e me deu um seco “corte”. Negando assim a sua continuação.

Ao mesmo tempo, como previra, o Coronel Fabrício caiu com todos os seus “nomeados”.

Como novo Presidente da Fundação foi indicado o Coronel do Exército Fortunado. Figura que se revelou impressionantemente inexpressiva e falsa. Chegou ao ponto de inventar “falcatruas” de amigos para, ao denunciá-los parecer “honestíssimo” pois punia até os amigos.

Tudo isso por pretender continuar sendo o Presidente ou Diretor do novo órgão, SUDECO, que estava sendo criado e logo substituiria a Fundação Brasil Central.

Para mim sobrou a chefia da base de Aragarças (ainda Fundação Brasil Central) a muito meu contragosto. Saudade da expedição.


O meu trabalho principal foi a administração da instalação de dois grandes grupos geradores (motores de submarinos alemães da Segunda Guerra), já que havia em Aragarças só um pequeno gerador tocado por um pequeno motor de caminhão.

A instalação foi realmente trabalhosa. A parte da mecânica ficara por conta de um engenheiro alemão, as obras civis (galpões e alicerce para os motores) com o mestre português, e o enorme refrigerador de água com um carpinteiro espanhol. O inter-relacionamento foi meio complexo. No fim de uns meses de trabalho a instalação ficou pronta, com o respectivo posteamento e fiação. Na véspera da inauguração, dois antigos funcionários da Fundação, de baixíssimo nível cultural, foram induzidos, na calada da noite para com um caminhão basculante de caçamba levantada, sair pela cidade arrebentando os fios de luz com a ponta da caçamba. Registro aqui o fato, para hoje, distante daquele tempo, poder se aquilatar o nível obtuso do “problema esquerda versus direita” da região. A luz era obra da “abominável” direita, dos militares, dos “gorilas” etc. A luz foi inaugurada em meados de 1968.

Durante os anos e períodos que estive nas Fundação, sempre fui absolutamente isento e apolítico. Sempre me dei com todos, era o meu feitio não só por inteligência como também por convicção.


Jamais puni alguém ou mesmo adverti oficialmente, embora as vezes houvera pequenos motivos.

Os meus superiores, como já disse, eram frutos da “revolução militar”. Eu, é lógico, era da sua confiança. Naquele fim de ano de 68 fui alvo de denúncia ao SNI pelo pessoal da “esquerda” onde me acusavam de desviar o rumo da estrada para favorecer as terras dos “Ometos”. O que foi endossada pelo então Presidente Coronel Fortunato.

O desvio de trinta graus para leste era bem flagrante. Não havia dúvidas, eu havia favorecido o “Grupo Ometo” ao passar a estrada por suas terras. Como resultado o SNI acionou o DERGO e este mandou um grupo de seus engenheiros ao local do “crime”.

Fizeram um relatório elogiando “o inteligente traçado da estrada” justificando o desvio. O tiro saíra também pela culatra.

Como já disse, eu fora meses antes informado da paralisação da estrada. Fiquei muito revoltado pois o nosso trabalho iria todo por terra. A estrada iria se transformar num “beco sem saída” e morrer se não fosse o meu desvio.

Cerca de dez anos depois, os trabalhos dela foram retomados agora por “gulosas” empreiteiras. Pelo nosso traçado a estrada não iria interferir no Parque Indígena do Xingu, pois passaria primeiro muito a seu leste e ao seu norte pela cachoeira Von Martius (Rio Xingu). Lugar raso e empedrado, por isso acredito de mais fácil construção de uma ponte. As empreiteiras fizeram essa estrada, hoje MT-422, cruzando o Xingu mais ao sul, no meio do Parque, perto da confluência de seu afluente Manitsauá-Missu.

Voltando a Aragarças. Logo após a inauguração da luz a Fundação Brasil Central foi extinta e em seu lugar criada a Superintendência de Desenvolvimento Centro Oeste (SUDECO) também do Ministério do Interior.

Sergio Vahia

Senti muito por tudo que acontecera. Fiquei indignado. Voltei ao Rio. Não quis saber de mais nada por quase três décadas. Passei a me dedicar ao mar. Como tudo que gosto me joguei de cabeça, de corpo e alma, procurando um esquecimento. Alcei-me a outro mundo.

Hoje, entretanto, me sinto muitíssimo gratificado. Em nossa velha e querida estrada com cerca de 400Km, hoje MT-422, asfaltada surgiram como previra cidades, vilas e currutelas e um cem número de atividades particulares. A região fora definitivamente ligada ao resto do país. Com o seu prolongamento foi atingido a região do Cachimbo e Santarém. É de fato um mundo sem fim. É só ver no mapa.

Só voltei à região para fazer uma “pequena expedição particular” no Xingu em 1994.

Tomei um terrível choque. Lugar em Xavantina onde onças esturravam haviam vários bancos.

DESCULPAS

Peço desculpas pela minha falta de memória (42 anos passados) não citando aqui inúmeros e pequenos fatos e principalmente nomes de companheiros. Heróis anônimos somente não esquecidos em minha memória. Posso neste relato ter cometido pequenos enganos mas a essência é intocável e verdadeira. Não posso porém deixar de registrar aqui o nome de pessoas que conviveram comigo mais intimamente. José Gonçalves, chefe da base Xavantina, funcionário de grande isenção e dedicação. Pilotos como Olavo Siqueira Cavalcante (morte natural) – o mais antigo -, Francisco Albuquerque Milhomen “Chico Doido” falecido em acidente; Cid de Lana Batista (falecido em acidente); Desival Ferreira Ribeiro e Portela. O antigo funcionário Romualdo Bruno – da Administração Central -, meu amigo e maior colaborador que tive desde 1950; o Diretor Gabeira, amigo de meu pai que após seu falecimento reabriu as portas da Fundação para mim.

Estas despretensiosas notas foram feitas para que alguma coisa fique registrada em Xavantina onde suas futuras gerações tenha alguma ideia da história da sua região.

FUNDAÇÃO BRASIL CENTRAL - ÓRGÃO FEDERAL

Em meados de 1943 o Presidente Vargas criou a Expedição Roncador-Xingú subordinada diretamente ao seu Gabinete.

Logo, em seguida, criou a Fundação Brasil Central, que englobou aquela Expedição.

A Fundação era subordinada ao Ministro João Alberto, do Ministério da Economia ou coisa parecida. Sua finalidade era viabilizar o desbravamento do Brasil Central, região então completamente virgem.

Suas metas principais eram: ESTRADAS, EDUCAÇÃO E SAÚDE.

Foi extinta em 1968, sendo sua sucessora a SUDECO – Superintendência ao Desenvolvimento do Centro-Oeste, subordinada ao Ministério do Interior.